O Brasil conta gotas:
entenda as causas e desafios da falta de água que se espalha pelo país
Escassez hídrica tem epicentro no Sudeste com efeitos como desabastecimento
permanente, risco de
apagão e alimentos mais caros
por Cadu Caldas Em São Paulo, garagens de condomínios agora
recebem um visitante incomum, mas vital: o caminhão-pipa
Foto: Diego Vara / Agencia RBS
Na virada do século, em 2001, o especialista em recursos
hídricos Marcos Freitas, então diretor da Agência Nacional das Águas (ANA), foi
convidado por uma revista a fazer projeções sobre o futuro do Brasil e como
seria a vida dos brasileiros em 2015. À época, a resposta de Freitas pareceu um
tanto esdrúxula: o país, mesmo tendo o maior volume de água doce do planeta,
viveria uma grave crise hídrica. Efeitos da falta de água: resultados em queda
e risco de demissões preocupam industria Em São Paulo, a população já sofre com
a pressão reduzida na rede, o que muitas vezes significa conviver com torneira
seca por até 18 horas. E pior: pode ser obrigada em breve a enfrentar um
rigoroso racionamento e ficar quatro ou até cinco dias por semana sem água. A
medida drástica tem uma razão. Se a chuva não vier e o consumo não for
reduzido, os reservatórios podem ficar sem água ainda no primeiro semestre. A
previsão mais pessimista fala em desabastecimento completo em março. O cenário
faz serem cogitadas possibilidades como antecipação das férias escolares de
julho para maio, uma maneira de incentivar que muitas famílias deixem o Estado
e, assim, diminuam o uso de água. Escassez
hídrica deixa preço da luz e de alimentos ainda mais caros Mas se o
problema era conhecido há tantos anos, por que não foi evitado? A resposta é
complexa. O fato é que a previsão de Freitas mais de uma década atrás não tinha
nada de sobrenatural. Estava baseada em números: – Entre 1998 e 2000, trabalhei
na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), onde nos preocupávamos muito com a quantidade de água disponível.
Quando fui transferido para a ANA, em 2001, e comecei a prestar atenção na
qualidade. Fiquei estarrecido com a poluição de rios e a falta de tratamento.
Era questão de tempo.
Mesmo comunicados,
governos não tomaram providências Hoje professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), o técnico conta que a situação observada quase 15 anos
atrás foi comunicada aos governos paulista e federal, mas não teve efeito. E
atribui isso à “surdez pluripartidária”, já que obra de saneamento “não
aparece” e, por isso, “não dá voto”. – É
impressionante que, até hoje, a ANA não
consegue exercer poder de polícia e
cuidar dos mananciais – observa Freitas. O alerta da agência em 2001 não foi o
único. Em 2009, o próprio governo paulista, com base na análise de mais de 200
especialistas, apontava risco de desabastecimento em 2015. E pior: a estiagem
que afeta o Sudeste há pelo menos três verões foi apenas um dos fatores que
intensificaram o problema. Não o gerou sozinho. É preciso incluir na conta o
descuido com as fontes de água, a falta de investimento das empresas para
evitar desperdício e a gestão inadequada, que tratou a água como fonte
inesgotável quando era cada vez mais escassa.
Em São Paulo,
desperdício encontra o desespero na Rua Augusta
Menor quantidade e pior qualidade elevam preço de hortaliças
e verduras em São Paulo 70% em um mês Soma-se a isso outro ingrediente: a falta
de diálogo com a população. Em ano eleitoral, como foi 2014, candidatos tucanos
e petistas fizeram malabarismos retóricos para amenizar a dimensão do colapso e
evitar a palavra racionamento. O resultado é a pior crise hídrica da história
de São Paulo.
Veja quanta água é
necessária para fazer as coisas que você consomé
Racionamento e
“guerra” à vista
Mesmo que a falta de chuva se concentre no Sudeste, é
consenso que o impacto se espraiará pelo país. Se não por dificuldades no
abastecimento, na alta do preço da luz e da comida e no enfraquecimento da
economia. Analistas projetam que o Brasil crescerá 0,1% em 2015, só que o
ajuste fiscal do governo e a falta de água podem levar a taxa para baixo de
zero.
Veja 12 soluções para
a crise da água que desafia o Brasil
Em Minas Gerais, após sobretaxar o consumo, o governo
sinalizou que pretende adotar racionamento para diminuir o uso em pelo menos
30%. Eventos tradicionais, como o Carnaval em Ouro Preto, terão de ser
adaptados. Até as repúblicas de estudantes, que costumam receber milhares de
turistas durante o feriado, limitarão o tempo de banho.
No vizinho Rio de Janeiro, pelo menos dois reservatórios que
abastecem o Rio Paraíba do Sul, principal fonte de água do Estado, já atingiram
o volume morto. Incapaz de evitar a escassez, o governo aventa a possibilidade
de racionamento nos próximos meses.
Saiba como funciona a
usina hidrelétrica de Furnas
Até onde a crise hídrica é capaz de chegar? Difícil dizer.
Mas especialistas indicam que o cenário atual é só o início de uma “guerra
hídrica” entre os Estados por rios que cortam o Sudeste do país.
Saiba como funciona o
Sistema Cantareira em São Paulo
A primeira trincheira já foi, inclusive, definida: o Paraíba
do Sul, que nasce em São Paulo, mas também corta Minas e o Rio, ao longo de
1.137 quilômetros de extensão.
Aos cariocas, o rio é vital por abastecer 11 milhões de
habitantes. Na sexta-feira, foi revelado o projeto da obra que interligará a
Bacia do Paraíba do Sul ao Sistema Cantareira, que só deve ficar pronta em 2016.
O uso dessa água gera divergências desde novembro e parou no Supremo Tribunal
Federal, que fixou prazo até 28 de fevereiro – pouco antes do previsto para o
colapso hídrico paulista – para cada governo apresentar propostas para resolver
a crise. – É uma escassez que se arrasta. E mesmo que chova muito acima da
média durante cinco anos, e os reservatórios voltem a ficar totalmente cheios,
nada vai ser como antes – sentencia Roberto Kirchheim, geólogo especializado em
recursos hídricos. TOMADO DE ZERO HORA DE RGS BR
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