Fenômeno atinge quilômetros da linha de costa e vem se
repetindo com freqüência, pelo terceiro ano consecutivo. Mas antes de qualquer
conclusão apressada, vamos avaliar o cenário...
Foto: Fabio
Dutra
- É possível que exista um efeito combinado da dragagem com
o aumento do material suspenso nas águas. Trabalhos, também, mostram que a taxa
de sedimentação da Lagoa está alterada e houve um acréscimo significativo nos
últimos 150 anos POR MARCELO DUTRA DA SILVA*
A lama apareceu na praia e a sua origem é um mistério. O
fenômeno atinge quilômetros da linha de costa e vem se repetindo com
freqüência, pelo terceiro ano consecutivo. Coincidência ou não, a série começou
depois da última dragagem no canal de acesso ao Porto do Rio Grande, iniciada
em dezembro de 2013, contratada pela Superintendência do Porto do Rio Grande
(SUPRG), para remover o volume aproximado de 1,6 milhão de m³ de sedimentos, ao
custo de R$ 22 milhões. Mas antes de qualquer conclusão apressada, vamos
avaliar o cenário.
O primeiro registro de lama no Cassino data de 1901 e a
primeira descrição científica de 1965, que atribuiu como fonte original ao
fenômeno a carga de materiais em suspensão nas águas da Lagoa dos Patos. Os
sedimentos que constituem a “face Patos” foram descritos em 1972 e mapeados de
forma detalhada em 1993, indicando para esta cobertura sedimentar um aspecto
lamoso. Na sequência, o processo de deposição foi registrado por diversos
autores, que atribuíram às tempestades a capacidade de ressuspender e
transportar os sedimentos para a praia, formando os depósitos de lama.
Em abril de 1998, uma tempestade depositou toneladas de
sedimentos na orla. A lama mudou o perfil da praia por meses e um trecho ficou
interditado durante o veraneio em 1999. Desde então, os sedimentos têm se
depositado de forma sazonal e a movimentação da lama pode estar associada aos
eventos climáticos extremos. O Instituo Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE),
há tempos, vem alertando para o aumento da intensidade das chuvas e tempestades
na região Sul, mesmo em períodos de El Niño moderados. E as mudanças no
comportamento do clima são perceptíveis, até para os menos atentos. As ressacas
parecem mais intensas, os ventos mais fortes e o mar agitado, com ondas cada vez
maiores.
Explicar a origem da lama no Cassino não é uma tarefa fácil
e exige uma compreensão dos processos, inclusive ecológicos. O fenômeno vem
sendo estudado há anos e está entre as discussões mais nervosas do Instituto de
Oceanografia da FURG, onde as opiniões científicas divergem e caminham em
direções opostas. Alguns impõem responsabilidade exclusiva à dragagem e propõem
medidas de controle e monitoramento mais severas. Enquanto outros desconsideram
a dragagem como o principal agente gerador de lama e buscam explicar o fenômeno
numa perspectiva mais ampla, de materiais aportados na bacia hidrográfica.
Portanto, não faltam argumentos, tampouco propostas e sugestões.
Não tenho dúvidas quanto a importância da dragagem e acho
que ela merece toda a atenção possível. A operação envolve a remoção de um
volume significativo de materiais, que são extraídos do leito do estuário e
transferidos para mar aberto. Suspeitar da dragagem é, no mínimo, plausível e
algumas evidências caminham nessa direção. Pesquisadores apontam para o aspecto
escuro e compactado da lama; para a concentração elevada de traços do Vanádio,
característico dos locais altamente impactados do estuário; para a presença de
ferro cristalizado; e a presença do gastrópode Heleobia australis, um pequeno
caramujo, que ocorre em estuários, baías e regiões costeiras, preferencialmente
com salinidades mais elevadas e em substrato lamoso, pois se alimenta da
matéria orgânica/detrito e perifíton. Este organismo possui uma concha, que
ajuda determinar o seu ambiente de origem. Os que habitam o estuário apresentam
uma concha agredida pelo atrito, enquanto os que vivem em um ambiente mais
tranquilo, no fundo lodoso da costa, por exemplo, possuem uma concha mais
preservada. Justamente, o caso dos organismos identificados na lama do cassino.
De outra parte, estudo recente, solicitado pela SUPRG, de
modelagem da dispersão da pluma de sedimentos em suspensão, conclui que a
condição de ventos NE, predominantes na região, determina o aprisionamento dos
sedimentos exportados pela Lagoa, alimentando o banco de lama existente no sul
dos molhes e que o material depositado no sítio de despejo não demonstra
tendência de transporte em direção à praia do Cassino. Estudos também apontam
para as atuais taxas de assoreamento do canal de navegação do Porto do Rio
Grande e indicam um quadro de aumento crítico no volume de material em
suspensão, que chega ao estuário transportado através da Lagoa, o que se
associa às observações de plumas mais densas e mais volumosas na saída dos molhes
da barra.
É evidente o manejo inadequado dos cultivos agrícolas nas
margens do sistema Patos/Mirim, destacou um colega e eu preciso concordar com
ele, pois este é o fator decisivo que alimenta o material transportado pela
pluma de sedimentos, que percorre a Lagoa e é liberado no oceano. Sim, o
fenômeno tem grande chance de estar associado ao aporte de sedimentos. A cada
ano, toneladas métricas de solo são perdidas e transportadas pelos rios, em
direção à Lagoa, numa curva que cresce na medida em que se intensifica o mau
uso da terra e a fragmentação da paisagem. Insistimos em não obedecer a Lei e
plantamos até o limite da margem dos corpos hídricos, sem respeitar a cobertura
ciliar e empregamos práticas de cultivo equivocadas ao invés de técnicas
eficientes na proteção do solo e da água.
Na verdade, é possível que exista um efeito combinado da
dragagem com o aumento do material suspenso nas águas. Trabalhos, também,
mostram que a taxa de sedimentação da Lagoa está alterada e houve um acréscimo
significativo nos últimos 150 anos. Também, que a carga de material em
suspensão, aportada pela Lagoa, vem aumentando ao longo do tempo e isso estaria
ligado ao processo de ocupação agrícola do planalto, ao norte do Estado, que
avançou em termos de diminuição da mata ciliar e erosão dos solos. Ignoramos o
significado de natureza e caminhamos no sentido contrário do desenvolvimento,
realizando uma dragagem depois da outra, para corrigir um problema que decorre
da absoluta falta de gestão e controle do espaço, por parte do Estado.
E mais uma dragagem vem aí. Em 2015 a Secretaria de Portos
da Presidência da República (SEP/PR) assinou, em Brasília, o contrato para
readequação da geometria do canal de acesso ao porto do Rio Grande. A obra está
orçada em R$ 368 milhões e dessa vez serão removidos 1,8 milhão m³ de
sedimentos. Um projeto que nasce cercado de promessas e preocupações com o meio
ambiente, mas que diante da falta de explicações para presença da lama no
Cassino, está impedido de seguir em frente, por um parecer negativo do IBAMA. E
mesmo que sejam aplicadas medidas rigorosas de controle, incluindo a precaução
de depositar os materiais em terra firme, além de métodos modernos de
monitoramento das ondas por bóias e dos sedimentos por traçadores, esta é uma
questão que não encontrará solução, se todos olharem apenas, para o fim do
tubo.
Atenção! O problema é mais amplo e bem mais complexo. Ele
começa na transformação histórica da paisagem e é lá que devemos tentar
interferir, estimulando novas políticas de planejamento e gestão do uso da
terra. O aporte de sedimentos precisa ser reduzido. Com menos material em
suspensão, menor a necessidade de novas dragagens e, quem sabe, a redução da
lama na praia do Cassino.
*Ecólogo, professor, doutor | TOMADO DE AGORA DE RGS BR
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