Em diferentes culturas, as pessoas acreditam que certos comportamentos entregam os mentirosos, mas, na verdade, pesquisadores encontraram poucas evidências para apoiar essa crença
Jessica Seigel - BBC Future (Knowable Magazine)*
A polícia achou que Marty Tankleff, de 17 anos, parecia calmo demais depois de encontrar os corpos da mãe esfaqueada e do pai espancado na casa da família em Long Island, no Estado de Nova York, nos EUA.
As autoridades não acreditaram em suas alegações de
inocência, e ele passou 17 anos na prisão pelos assassinatos.
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em currículos
Em outro caso, a polícia achou que Jeffrey Deskovic, de 16
anos, estava aflito e ansioso demais para ajudar os detetives depois que seu
colega de escola foi encontrado estrangulado.
Ele também foi julgado por mentir e cumpriu quase 16 anos de
prisão pelo crime.
Um deles não estava transtornado o suficiente. O outro
estava transtornado demais. Como esses sentimentos opostos podem ser pistas
reveladoras de culpa?
Não são, diz a psicóloga Maria Hartwig, pesquisadora do John
Jay College of Criminal Justice da Universidade da Cidade de Nova York.
Ambos os rapazes, posteriormente inocentados, foram vítimas
de uma concepção errônea generalizada: que você pode identificar um mentiroso
pela maneira como ele age.
Em diferentes culturas, as pessoas acreditam que certos
comportamentos — como desviar o olhar, inquietação e gagueira — entregam os
mentirosos.
Mas, na verdade, pesquisadores encontraram poucas evidências
para apoiar essa crença, apesar de décadas de pesquisas.
"Um dos problemas que enfrentamos como pesquisadores da
mentira é que todo mundo pensa que sabe como a mentira funciona", afirma
Hartwig, coautora de um estudo sobre pistas não-verbais para mentira publicado
na revista acadêmica Annual Review of Psychology.
Esse excesso de confiança levou a erros judiciais graves,
como Tankleff e Deskovic sabem muito bem.
"Os erros de detecção de mentira custam caro para a
sociedade e para as pessoas vítimas de erros de julgamento", explica
Hartwig.
"Tem muita coisa em jogo."
Sinais errados
Os psicólogos sabem há muito tempo como é difícil
identificar um mentiroso.
Em 2003, a psicóloga Bella DePaulo, agora afiliada à
Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e seus colegas examinaram a
literatura científica existente e reuniram 116 experimentos que comparavam o
comportamento das pessoas ao mentir e ao dizer a verdade.
Os estudos avaliavam 102 possíveis pistas não-verbais,
incluindo desviar o olhar, piscar, falar mais alto (uma pista não-verbal porque
não depende das palavras usadas), encolher os ombros, mudar a postura e
movimentar a cabeça, mãos, braços ou pernas.
Nenhuma delas provou ser um indicador confiável de um
mentiroso, embora algumas fossem levemente correlacionadas, como pupilas
dilatadas e um pequeno aumento — indetectável ao ouvido humano — no tom de voz.
Três anos depois, DePaulo e o psicólogo Charles Bond, da
Texas Christian University, também nos EUA, revisaram 206 estudos envolvendo
24.483 observadores que julgaram a veracidade de 6.651 comunicações de 4.435
indivíduos.
Nem os especialistas em segurança pública, nem os estudantes
voluntários foram capazes de distinguir as afirmações verdadeiras das falsas
mais do que 54% das vezes — um pouco acima do acaso.
Em experimentos individuais, a precisão oscilou de 31 a 73%
— e variou mais amplamente em estudos menores.
"O impacto da sorte é aparente em estudos
pequenos", diz Bond. "Em estudos de tamanho suficiente, a sorte se
nivela."
Este efeito em relação ao tamanho sugere que a maior
precisão relatada em alguns dos experimentos pode apenas se resumir ao acaso,
explica o psicólogo e analista de dados aplicados Timothy Luke, da Universidade
de Gotemburgo, na Suécia.
"Se não encontramos grandes efeitos até agora",
diz ele, "é porque provavelmente não existem."
A sabedoria popular diz que você pode identificar um
mentiroso pela forma como ele soa ou age.
Mas quando os cientistas analisaram as evidências,
descobriram que muito poucas pistas realmente tinham qualquer relação
significativa com mentir ou dizer a verdade.
Mesmo as poucas associações que eram estatisticamente
significativas não eram fortes o suficiente para serem indicadores confiáveis.
Os peritos da polícia, no entanto, frequentemente apresentam
um argumento diferente: que os experimentos não eram realistas o suficiente.
Afinal de contas, eles dizem, os voluntários — a maioria
estudantes — instruídos a mentir ou dizer a verdade em laboratórios de
psicologia não enfrentam as mesmas consequências que os suspeitos de crimes na
sala de interrogatório ou no banco dos réus.
"Os 'culpados' não tinham nada em jogo", afirma
Joseph Buckley, presidente da John E Reid and Associates, que treina milhares
de policiais todos os anos em detecção de mentiras baseada em comportamento.
"Não era uma motivação real, consequente."
Samantha Mann, psicóloga da Universidade de Portsmouth, no
Reino Unido, achava que as críticas da polícia eram pertinentes quando começou
a pesquisar sobre a mentira há 20 anos.
Para aprofundar a questão, ela e o colega Aldert Vrij
assistiram a horas de entrevistas em vídeo da polícia com um serial killer
condenado e identificaram três verdades conhecidas e três mentiras conhecidas.
Mann pediu então a 65 policiais ingleses que vissem as seis
declarações e julgassem quais eram verdadeiras e quais eram falsas. Como as
entrevistas eram em holandês, os oficiais julgaram inteiramente com base em
pistas não-verbais.
Os policiais estavam corretos 64% das vezes — melhor do que
o acaso, mas ainda não muito precisos, diz ela.
E aqueles que se saíram pior foram os que disseram confiar
em estereótipos não-verbais como "mentirosos desviam o olhar" ou
"mentirosos são inquietos".
Na verdade, o assassino manteve contato visual e não se
inquietou ao mentir.
"Esse cara estava claramente muito nervoso, sem
dúvida", afirma Mann, mas controlou seu comportamento para contrariar
estrategicamente os estereótipos.
Em um estudo posterior, também realizado por Mann e Vrij, 52
policiais holandeses não se saíram melhor do que o acaso ao tentar distinguir
entre declarações verdadeiras e falsas de familiares que haviam matado seus
parentes e negado veementemente em coletivas de imprensa que foram usadas no
estudo.
Notavelmente, os policiais com pior desempenho foram aqueles
que acreditaram que as demonstrações de emoção eram genuínas. Mas o que isso
significa?
"Se o marido matou a esposa, ele poderia estar
perturbado por uma série de razões, como remorso ou (medo de) ser preso",
diz Mann.
"O comportamento não-verbal é tão idiossincrático. Se
você se concentrar no comportamento não-verbal, como as emoções, você vai
cometer erros."
Confirmando esses resultados em larga escala, anos depois,
Hartwig e Bond revisaram a literatura de estudos que comparavam as habilidades
das pessoas para detectar mentiras de alto e baixo risco.
Eles não encontraram evidências de que as pessoas
detectassem melhor as mentiras contadas por criminosos ou suspeitos acusados
??injustamente em investigações policiais do que aquelas contadas por
voluntários em laboratório.
Algo a esconder
De assassinos em série a estudantes mentindo em experimentos
de laboratório, as mentiras em todos esses experimentos foram ditas oralmente.
Em um estudo publicado em 2019, Mann examinou a farsa
não-verbal, como quando alguém está tentando esconder uma atividade ilícita —
um tipo de mentira relevante para detectar terroristas ou contrabandistas.
Ela recrutou 52 estudantes universitários voluntários e
pediu a metade deles que transportasse um laptop que supostamente continha
fotos confidenciais em um trajeto de balsa entre duas cidades.
Os voluntários foram orientados a tentar se misturar em meio
à multidão e não parecerem "suspeitos", porque haveria pessoas
tentando identificá-los.
A outra metade do grupo recebeu um telefone celular comum
para transportar, sem instruções para esconder o que estavam fazendo.
Quando Mann mostrou os vídeos das viagens de balsa para 104
outros voluntários e pediu que identificassem os "contrabandistas",
os observadores não se saíram melhor do que o acaso.
Em entrevistas posteriores, os "contrabandistas"
disseram que estavam nervosos, mas conscientemente tentaram agir normalmente e
controlar o nervosismo com táticas como ouvir música ou usar seus telefones.
Em seguida, Mann aumentou o nível de tensão do experimento.
Metade de um novo grupo de 60 voluntários recebeu um envelope com moedas russa,
egípcia e coreana para esconder, enquanto a outra metade não
"contrabandeou" nada.
Mas, desta vez, Mann enviou dois pesquisadores para andar
pela balsa e analisar os passageiros, aparentando comparar seus rostos com
fotos em um telefone celular.
Desta vez, 120 observadores que tentavam identificar os
"contrabandistas" no vídeo acertaram 39,2% das vezes — bem menos do
que o acaso.
A razão, diz Mann, é que os "contrabandistas"
conscientemente se esforçaram para parecer normais, enquanto os voluntários
"inocentes" do grupo de controle agiram com naturalidade.
A surpresa deles com a vigilância inesperada pareceu aos
observadores um sinal de culpa.
Disfarçar bem
A descoberta de que mentirosos podem esconder o nervosismo
com sucesso é a peça que faltava na pesquisa sobre mentira, diz o psicólogo
Ronald Fisher, da Universidade Internacional da Flórida, nos EUA, que treina
agentes do FBI, a polícia federal americana.
"Não são muitos os estudos que comparam as emoções
internas das pessoas com o que os outros percebem", diz ele.
"A questão toda é que os mentirosos ficam mais
nervosos, mas isso é um sentimento interno, ao contrário do modo como eles se
comportam, conforme observado pelos outros."
Estudos como estes levaram os pesquisadores a abandonar em
grande parte a busca por pistas não-verbais para a mentira.
Mas existem outras maneiras de identificar um mentiroso?
Hoje, os psicólogos que investigam a mentira estão mais
propensos a se concentrar em pistas verbais e, particularmente, em maneiras de
ampliar as diferenças entre o que dizem os mentirosos e quem fala a verdade.
Por exemplo, os interrogadores podem reter evidências
estrategicamente por mais tempo, permitindo que um suspeito fale mais
livremente, o que pode levar os mentirosos a contradições.
Em um experimento, Hartwig ensinou essa técnica a 41
policiais em treinamento, que na sequência identificaram corretamente os
mentirosos em cerca de 85% das vezes — em comparação com 55% de outros 41
recrutas que ainda não haviam recebido o treinamento.
"Estamos falando de melhorias significativas nas taxas
de precisão", diz Hartwig.
Outra técnica de interrogatório explora a memória espacial
ao pedir que suspeitos e testemunhas descrevam uma cena relacionada a um crime
ou um álibi para ser desenhada.
Como isso reforça a lembrança, quem diz a verdade pode
apresentar mais detalhes.
Em um estudo simulado de missão de espionagem publicado por
Mann e seus colegas no ano passado, 122 participantes se encontraram com um
"agente" no refeitório da escola, trocaram um código e, em seguida,
receberam um pacote.
Posteriormente, os participantes instruídos a dizer a
verdade sobre o que aconteceu forneceram 76% mais detalhes sobre a experiência
durante uma entrevista para ilustrar o ocorrido do que aqueles solicitados a
encobrir a troca de código-pacote.
"Quando você ilustra, está revivendo um evento — então
isso ajuda a memória", diz Haneen Deeb, psicóloga da Universidade de
Portsmouth, coautora do estudo.
O experimento foi desenvolvido com a contribuição da polícia
do Reino Unido, que regularmente recorre a entrevistas para ilustração e
trabalha com pesquisadores de psicologia, como parte da transição para os
interrogatórios de presunção de inocência, que substituiu oficialmente os
interrogatórios do tipo acusatório nas décadas de 1980 e 1990 no país após
escândalos envolvendo condenações injustas e abusos.
Mudança lenta
Nos EUA, porém, essas reformas baseadas na ciência ainda
precisam ser introduzidas significativamente na polícia e em outras autoridades
de segurança.
A Administração de Segurança de Transporte (TSA, na sigla em
inglês) do Departamento de Segurança Interna dos EUA, por exemplo, ainda usa
pistas não-verbais de mentira para selecionar passageiros para interrogatório
nos aeroportos.
A lista de verificação de triagem comportamental secreta da
agência instrui os agentes a procurar pistas que indiquem supostos mentirosos,
como desviar o olhar — considerado um sinal de respeito em algumas culturas —,
olhar fixo prolongado, piscar rapidamente, reclamar, assobiar, bocejar de forma
exagerada, cobrir a boca ao falar e inquietação ou cuidados pessoais
excessivos.
Todas essas pistas foram completamente desacreditadas por
pesquisadores.
Com os agentes se baseando em fundamentos tão vagos e
contraditórios para suspeita, talvez não seja surpreendente que passageiros
tenham apresentado 2.251 queixas formais entre 2015 e 2018, alegando que foram
selecionados com base na nacionalidade, raça, etnia ou outros motivos.
O escrutínio do Congresso em relação aos métodos de triagem
da TSA em aeroportos remonta a 2013, quando o General Accounting Office (GAO)?
— o órgão de auditoria do Congresso americano — revisou as evidências
científicas para detecção de comportamento e descobriu que eram insuficientes,
recomendando a TSA a limitar seu financiamento e restringir seu uso.
Em resposta, a TSA eliminou o uso de oficiais de detecção de
comportamento independentes e reduziu a lista de verificação de 94 para 36
indicadores, mas manteve muitos elementos sem respaldo científico, como suor
intenso.
Em resposta ao novo escrutínio do Congresso, a TSA prometeu
em 2019 melhorar a supervisão da equipe para reduzir a criação de perfis. Ainda
assim, a agência continua a ver valor na triagem comportamental.
Como um oficial da Segurança Interna disse aos
investigadores do Congresso, vale a pena incluir indicadores comportamentais de
"bom senso" em um "programa de segurança racional e
defensável", mesmo que não atendam aos padrões acadêmicos de evidência
científica.
O gerente de relações com a imprensa da TSA, R Carter
Langston, diz que o órgão "acredita que a detecção comportamental fornece
uma camada crítica e eficaz de segurança dentro do sistema de transporte do
país."
A TSA cita dois casos distintos de detecção comportamental
bem-sucedidos nos últimos 11 anos que impediram três passageiros de embarcar em
aviões com dispositivos explosivos ou incendiários.
Mas, como diz Mann, sem saber quantos supostos terroristas
escaparam da segurança sem serem detectados, o sucesso de tal programa não pode
ser medido.
E, na verdade, em 2015, o chefe interino da TSA foi afastado
após agentes infiltrados do Departamento de Segurança Interna contrabandearem
com sucesso, em uma investigação interna, dispositivos explosivos falsos e
armas reais por meio da segurança do aeroporto 95% das vezes.
Em 2019, Mann, Hartwig e 49 outros pesquisadores
universitários publicaram uma revisão de estudos avaliando as evidências da
triagem de análise comportamental, concluindo que os profissionais de segurança
pública deveriam abandonar essa pseudociência "fundamentalmente
equivocada", que pode "prejudicar a vida e a liberdade dos
indivíduos".
Hartwig, por sua vez, se juntou ao especialista em segurança
nacional Mark Fallon, ex-agente especial do Serviço de Investigação Criminal da
Marinha dos Estados Unidos e ex-diretor assistente de Segurança Interna, para
criar um novo currículo de treinamento para investigadores mais solidamente
baseado na ciência.
"O progresso tem sido lento", diz Fallon.
Mas ele espera que reformas futuras salvem as pessoas do
tipo de condenações injustas que marcaram as vidas de Jeffrey Deskovic e Marty
Tankleff.
Para Tankleff, os estereótipos de mentirosos se revelaram
ferrenhos.
Em anos de campanha para ser absolvido e recentemente para
exercer advocacia, o rapaz reservado e estudioso teve que aprender a mostrar
mais sentimento "para criar uma nova narrativa" de inocente
injustiçado, diz Lonnie Soury, gerente de crise que foi sua coach nesse
esforço.
Funcionou, e Tankleff finalmente conseguiu ser admitido na
Ordem de Nova York em 2020. Por que demonstrar emoção era tão importante?
"As pessoas", diz Soury, "são muito
tendenciosas".
*Este artigo foi publicado originalmente na Knowable
Magazine e republicado aqui com permissão.
Tomado de correio brasiliense
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