Análise de ossos
revela surpresa de monastério alemão do século 11
Análise de dentes fossilizados de uma mulher que viveu em um
monastério alemão por volta do século 11 mostra que ela ilustrava manuscritos
destinados a reis e nobres. Até agora, imaginava-se que o trabalho era
desempenhado apenas por homens
PO Paloma Oliveto
Artista viveu no monastério em Dalhehim. Restos de pigmento
azul nos dentes indicam que ela, provavelmente, lambia os pincéis enquanto
pintava(foto: Christina Warinne/Divulgação)
Antes da invenção da imprensa, no século 15, livros eram
artigos raros. Na Idade Média, apenas as igrejas e os nobres tinham acesso a
obras escritas — quase todas, de assuntos religiosos. Se a temática não
variava, os manuscritos, em si, eram bastante diversos. Copiados e ilustrados
por monges, muitos podem ser considerados obras de arte. Alguns, os mais
preciosos, são ricamente ornados com pigmentos e materiais raros, incluindo
folhas de ouro e pedras exóticas para a Europa, como o lápis lázuli, uma rocha
de coloração azul proveniente do Afeganistão e do Paquistão.
Esse material extremamente caro na época foi a deixa
para que pesquisadores da Universidade de York e do Instituto Max Planck de
Ciência da História Humana descobrissem que um monge ilustrador que viveu na
Alemanha por volta de 1100 a.C era, na verdade, uma monja ilustradora. Embora
não seja a primeira vez que se constate a existência de mulheres copistas e
artistas na Idade Média, são raros, até hoje, trabalhos rebuscados em
manuscritos atribuídos a elas. Por preconceito, no geral as obras mais ricas,
como aquelas encomendadas para presentear reis e nobres, ficavam nas mãos dos
homens.
Os pesquisadores britânicos e alemães fizeram a descoberta a
partir da análise de um cálculo dental — tártaro ou placa que fossiliza no
dente durante a vida — da ilustradora. Eles estudavam fósseis de indivíduos
enterrados em um cemitério medieval associado a um monastério feminino em
Dalhehim, Alemanha. A data exata da fundação dessa construção religiosa não é
conhecida porque há poucos registros sobre ela. Mas sabe-se que uma comunidade
de mulheres pode ter se estabelecido no local já no início do século 10. A
referência mais antiga ao prédio data de 1244 a.C. Lá, acredita-se que viviam
14 religiosas desde a inauguração até a destruição, causada por um incêndio, no
século 14.
A análise dos dentes das pessoas enterradas no cemitério
local revelou que, nos cálculos dentais de uma mulher, havia numerosos pontos
com um pigmento azul embutido. Ela tinha de 45 a 60 anos quando morreu, por
volta de 1000-1200 a.C. Os cientistas não encontraram evidências de traumas ou
infecções nos ossos, nem patologias esqueléticas. A única característica
notável eram as partículas coloridas nos dentes. “Quando os cálculos se
dissolveram, saíram centenas de minúsculas partículas azuis. Foi algo muito
surpreendente”, conta Anita Radini, professora da Universidade de York e primeira
coautora do artigo, publicado na revista Science Advances.
O material passou por uma série de métodos espectrográficos,
que revelam a composição química de um objeto, incluindo as técnicas mais
modernas, como espectroscopia de raios X. Os exames mostraram que o pigmento
azul era proveniente do lápis lázuli. “Examinamos muitos cenários para saber
como esse mineral poderia ter se incorporado ao cálculo dental dessa mulher”,
explica Radini. “Com base na distribuição do pigmento na boca, concluímos que o
cenário mais provável seria que ela usava o pigmento para pintar e, enquanto
pintava, lambia o pincel”, disse, em nota, Monica Trump, primeira coautora do
estudo e pesquisadora do Max Planck. De acordo com os historiadores envolvidos
no projeto, o uso do pigmento extraído de lápis lázuli era reservado, assim
como o ouro e a prata, aos manuscritos mais luxuosos. Apenas escribas e
pintores considerados de talento excepcional estavam familiarizados com o
material.
Invisíveis
Christina Warinner, do Instituto Max Planck e autora sênior
do artigo, diz que a descoberta inesperada de um pigmento tão valoroso em uma
época tão remota e na boca de uma mulher da zona rural da Alemanha não tem
precedentes. “Enquanto a Alemanha é conhecida por ter sido um centro de produção
de livros durante esse período, identificar as contribuições de uma mulher é
particularmente difícil. Como sinal de humildade, muitos escribas e artistas
medievais não assinavam seu trabalho, prática especialmente aplicável a
mulheres. A baixa visibilidade do trabalho feminino na produção de manuscritos
fez com que muitos estudiosos modernos assumissem que elas tinham um pequeno
papel nisso”, diz.
Especialista em manuscritos medievais produzidos na Alemanha
e autora de um banco de dados de ilustradoras do período, Anne Winston-Allen
professora de estudos alemães da Universidade de Southern Illinois, sustenta
que essa crença não corresponde à realidade medieval no país europeu. No
repositório, a especialista, que não participou do estudo publicado na Science
Advances, levantou o nome de 21 artistas religiosas que ilustraram 55
manuscritos. Além disso, ela identificou outros 20 manuscritos ilustrados por
16 pintores que provavelmente eram do sexo feminino. “De fato, é provável que
mulheres sempre tenham ilustrado livros. A questão, agora, é como
identificá-los”, diz.
Em nota, Michael McCormick, pesquisador da Universidade de
Harvard que colaborou com o estudo do Max Planck, disse que as descobertas dos
colegas não apenas desafiam crenças antigas nesse campo, mas descortinam uma
história de vida individual. Os restos mortais dessa mulher estavam
originalmente em um local sem nada de especial, ou ao menos parecia. Mas, com a
investigação, os pesquisadores foram capazes de revelar algo memorável a
respeito dela, defende.
“Essa mulher estava ligada a uma vasta rede comercial
global, passando das minas do Afeganistão até a comunidade dela, na Alemanha
medieval, por meio de metrópoles comerciais do Egito Islâmico e da Constantinopla
Bizantina. O crescimento econômico da Europa no século 11 aumentou a demanda
por pigmentos preciosos e exóticos que viajaram milhares de quilômetros em
caravanas de mercadores e navios para servir as ambições criativas dessa
artista”, diz McCormick
“A baixa visibilidade do trabalho feminino na produção de
manuscritos fez com que muitos estudiosos modernos assumissem que elas tinham
um pequeno papel nisso”
Anne Winston-Allen, professora de estudos alemães da
Universidade de Southern Illinois // TOMADO DE CORREIO BRAZILIENSE
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