Rio Doce deixa de correr na foz original e de desaguar no
Atlântico pela primeira vez na história Amarga
agonia é fruto da superexploração em toda a bacia, que tem 86% de sua área em
território
mineiro Mateus Parreiras ,
Guilherme Paranaiba
ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS O rio, à esquerda, separado
do mar por banco de areia em Regência (esq): resultado de 850 quilômetros de
agressão
Linhares (ES), Rio Doce, Governador Valadares, Aimorés e
Ponte Nova – A agonia do maior curso d’água do Sudeste brasileiro chegou ao
patamar mais crítico da história. Sem força, as águas do Rio Doce, que nascem
em Minas Gerais e atravessam o estado até o Espírito Santo não deságuam mais no
Oceano Atlântico no ponto tradicional. Considerado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) o 10º mais poluído do país, o manancial chegou a
um estágio tão grave de seca e assoreamento que a foz – que se alargava por 380
metros de comprimento e tingia a costa capixaba de sedimentos cor de barro –
recuou 60 metros continente adentro e se encontra agora como uma lagoa,
represada por uma faixa de areia grossa de dois metros de altura. O bloqueio
ocorreu há dois meses, em Regência Augusta, um distrito do município de
Linhares (ES). Mas o que ocorre no estado vizinho é apenas o estágio final de
um mapa de degradação que começa já na cabeceira e se estende não só pelos 850
quilômetros do leito, mas também pela maior parte da bacia de 86 mil
quilômetros quadrados. Segundo ambientalistas, biólogos e hidrólogos, foram as
agressões como desmatamento, despejo de esgotos e descargas químicas em Minas
Gerais, que comporta 86% da bacia, que levaram a essa situação de penúria. A
única saída do Rio Doce para o mar, atualmente, se restringe a um braço de
areia a um quilômetro da foz original – que na verdade consiste em um avanço do
mar rio adentro, mas que pode se fechar a qualquer momento, dependendo do
regime das marés. “Essa é uma tragédia ecológica que completa uma situação de
agressões ambientais que o Rio Doce vinha sofrendo. Nunca antes a foz havia se
fechado completamente. E isso se deve à destruição das matas ciliares, que
barravam sedimentos vindos de outras áreas desmatadas, agora transformadas em
pastagens e outros cultivos”, afirma o secretário-executivo do comitê da Foz do
Rio Doce, Carlos Sangália, educador ambiental do Projeto Tamar, sobre a
interrupção do rio, retratada pelo jornal A Gazeta, do Espírito Santo, em 23 de
junho. Da nascente à foz, o caminho de degradação do Rio Doce acompanha o
histórico de desenvolvimento predatório na bacia. Inserida em um território
onde originalmente havia predomínio de 98% do bioma Mata Atlântica – um dos
mais ameaçados do mundo –, o manancial hoje corre por um cenário de margens
desprovidas de mata ciliar, faz desvios em bancos de areia extensos como
praias, serpenteia por entre manilhas de esgoto que cospem caldos contaminados
e diante de morros devastados, tomados por pastagens e erosão. Em Regência
Augusta, os impactos de tudo que é feito antes da foz trouxeram alerta à
comunidade de pescadores que chega a 1.200 habitantes. Quem vive da pesca não
consegue mais zarpar pelo porto do Rio Doce em direção ao mar, porque a nova
desembocadura é rasa demais para a maioria dos barcos. “Não tem mais como ir
para o mar. Ou jogamos a rede no que sobrou do rio ou armamos na praia. A
quantidade de peixe, que já era pouca, diminuiu mais ainda. Para mim, a solução
vai ser parar de pescar e trabalhar fichado (com carteira assinada)”, lamenta o
pescador Edmar de Morais, de 65 anos. A falta de peixes, como percebeu o
pescador, é outro aspecto que preocupa ambientalistas. “Espécies como o robalo
e a manjuba precisam subir do mar para o rio para se reproduzir. O ciclo se
rompe quando os peixes não encontram caminho para o Rio Doce”, alerta o
assessor do projeto Tamar, Hélio Luiz Alcântara. O Tamar é conhecido pela
preservação das tartarugas marinhas ao longo da costa brasileira,
principalmente por incluir as comunidades tradicionais que antes matavam esse
animal. Mas as próprias tartarugas estão ameaçadas pelo bloqueio do Rio Doce.
“Os espécimes mais jovens se alimentam de peixes que nadam na foz. Agora terão
de se deslocar para encontrar mais comida. Fêmeas também podem botar seus ovos
na área que está seca e onde pode voltar a correr água, perdendo toda a
postura”, afirma Alcântara. A espécie mais ameaçada é a tartaruga-gigante ou de
couro (Demochelys coriacea), que tem exatamente na praia onde deságua o Doce a
única área de desova em todo o litoral brasileiro, segundo Sangalia. O recuo
das águas já vinha trazendo problemas para populações capixabas que dependem do
manancial. A captação de água de Regência Augusta era feita no Rio Doce, mas a
perda gradual de força da corrente fez com que o sal do mar avançasse cerca de
20 quilômetros pelo continente. Com isso, a água, que já é poluída a ponto de
chegar a cobrir as areias da praia com garrafas de plástico e lixo, não pode
ser dessalinizada para que se torne potável, obrigando a companhia de
abastecimento e as escolas a recorrer à abertura de poços. Agredido
ao nascer Antes mesmo de o rio iniciar sua saga do Leste mineiro até o
oceano, a água que vai formar o Doce já é tomada por poluição na cabeceira,
formada pela confluência dos rios Piranga e do Carmo. O Piranga foi o primeiro
rio mineiro a entrar em situação de alerta – o último estágio antes de
restrições de captação – devido à vazão reduzida. Ao passar por Ponte Nova,
cidade com 57 mil habitantes na Zona da Mata, o Piranga recebe todo o esgoto da
população, sem tratamento. A ocupação é desordenada ao longo da calha e não é
difícil encontrar manilhas de diferentes diâmetros injetando resíduos dia e
noite no curso d’água. O Rio do Carmo, por sua vez, também recebe cargas
poluidoras poucos quilômetros depois de aflorar, em Ouro Preto, na Região
Central. O surgimento do Rio Doce também sofre com a escassez hídrica, em um
ponto em que moradores locais se lembram que a água era abundante. As pedras
aparentes indicam que a vazão é pouca e cerca de 200 metros à frente, já como
Rio Doce, o manancial começa a ser explorado por dragas de areia. O
secretário-executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH Doce),
Luiz Cláudio Figueiredo, atribui a situação do rio na foz a um processo lento
de degradação em toda a bacia, aliado à falta de chuvas e ao consumo de água,
que se manteve normal, apesar da escassez. Ele se mostra preocupado com o
futuro, pois diz não ser possível estimar qual será o comportamento das chuvas.
“Da mesma forma que o que aconteceu na foz é resultado de um processo lento, a
reversão do quadro também é lenta, com ações de longo prazo, como os planos de
saneamento e o programa de recuperação de nascentes. Então, se não chover muito
no próximo período, o problema ainda vai se alongar por muito tempo”, adverte. Tomado
de em.com.br sugerido en face de elizabet
oliveira
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