'Somos todos idiotas?'
Referência de sucesso da privatização tucana, a Vale
distribuiu em 2011 US$ 4 bilhões a seus acionistas, mas não instalou buzinas
que salvariam pessoas da lama.
por: Saul Leblon
Antonio Cruz / Agência Brasil
A ilusão de que a barbárie é um processo incremental que se
desenvolve em algum ponto remoto do planeta, ou do calendário, ofusca uma
rotina de convívio com a sua plena vigência nos dias que correm.
A matança em Paris na
última sexta-feira, o avanço de um mar de lama assassina no interior
brasileiro, são ilustrações de uma transição de ciclo histórico, cuja raiz é
sonegada ao discernimento social pela semi-informação emitida do aparelho
midiático conservador.
A cada soluço do
inaceitável ergue-se, assim, a boa vontade dos que farejam algo estranho
arranhando a porta do lado de fora.
Em janeiro, dizíamos
‘Somos todos Charlie’.
Em setembro dissemos
‘Somos todos Aylan Kurdi’ ( o menino curdo de três anos, morto em uma praia na
Turquia).
Em novembro estamos
dizendo ‘Somos todos franceses’, pranteando a centena e meia de jovens
assassinados em uma única noite em Paris.
Por que estamos sendo
jogados periodicamente a nos identificarmos com vítimas de uma tragédia que se
abate sem que se possa detê-la, nem explicar de onde se origina e por que se
repete em formas diversas com a mesma gravidade?
A lista é
interminável.
Se a mídia desse a
ênfase adequada a outros dramas
equivalentes, por certo teríamos dito também
‘somos todos gregos’, ‘somos todos sírios’, ‘somos todos africanos’, ’somos todos
desempregados europeus’, somos todos despejados espanhóis, somos todos líbios,
iraquianos, iranianos, pretos americanos pobres...
Se desse hoje o alarme
suficiente à lamacenta catástrofe promovida pela Vale, em Minas Gerais,
estaríamos dizendo ‘Somos todos rio Doce’....
A solidariedade
exclamativa é importante ao evidenciar a nossa inquietação.
Mas é insuficiente.
Quando o que está em
jogo é a incompatibilidade entre a ganância estrutural dos mercados e a dos
impérios, de um lado; e a sobrevivência do interesse público, de outro, a boa
intenção exclamativa, a exemplo da caridade cristã, não é capaz de afrontar os
perigos que acossam as bases da sociedade e o seu futuro.
A desordem mundial,
movida a incertezas, brutalidades psicopatas, insegurança social permanente e
colapsos recorrentes movidos a forças intangiveis, não retrocederá se não for
afrontada com anteparos do interesse público dotado de ferramentas à altura do
desafio: Estados nacionais democraticamente fortalecidos.
A ausência de
coordenação global entre economias, a subordinação da democracia a interesses
financeiros que se dedicam a esvaziá-la, a incompatibilidade entre a acumulação
irracional e a sobrevivência dos recursos que formam as bases da vida na terra,
não serão superados com boas intenções de organismos não governamentais.
A crise de 2008 foi o
sintoma desse corredor estreito da história para onde estão sendo tangidas
referências e conquistas acumuladas pelas lutas democráticas e populares desde
os primórdios do século 20 e antes dele.
Ao contrário do que
recitam colunistas agendados pelos departamentos de economia dos bancos, ela
não acabou.
O cerco em marcha se
estreita, como evidenciam os acontecimentos de Paris, ou seus equivalentes na
Síria.
A emergência do ciclo
neoliberal nos anos 70 deu carta branca à ganância rentista, confiante na
expertise do dinheiro para alocar recursos com maior eficiência ao menor custo,
tendo o globo como tabuleiro cativo.
Os alicerces da
democracia social (o pleno emprego,
direitos universais, Estado, partidos e sindicatos forte) foram corroídos.
Sob explosões de
bolhas, bombas, desemprego, náufragos,
governos e nações acuadas por defenderem a destinação social do
desenvolvimento, o século 21 assiste agora aos efeitos colaterais dessa troca.
Um poder de chantagem
ímpar, dotado de mobilidade sem igual na história do capitalismo ungiu o bunker
financeiro em carrasco das nações.
O preço da mutação é
o novo normal sistêmico.
A desigualdade
cresce, o emprego definha, o endividamento asfixia famílias e Estados, a
política se desmoraliza, fundos e acionistas enriquecem em uma sociedade que
vegeta, e sobretudo, quando ela empobrece.
A barragem acumula
rejeitos de todas as raças, cores e religiões.
Não há lugar para
todos serem a mesma coisa em parte alguma nessa engrenagem seccionada por
diques que separam vidas sólidas de massas líquidas lamacentas.
Se o Estado é
capturado integralmente pelos mercados, as pontes para a construção de laços de
valores compartilhados entre as nações e dentro das nações ficam
intransitáveis.
Os terroristas que
mataram 127 jovens em uma só noite em Paris diziam exatamente isso enquanto
disparavam:
‘Vamos fazer com
vocês o que vocês fazem na Síria’, em alusão ao intervencionismo aberto do
governo Hollande que se estende da Síria ao Iraque, do Iraque a nações
africanas.
Estamos falando de um
governo socialista, ou melhor, de mais um sintoma da doença maligna que faz da
política o novo idioma do caos.
A chave religiosa
apenas reforça esse hospício ordenado pela razão financeira, que instala uma
guerra social aberta de abrangência global, em nosso tempo.
Frentes conflagradas
espalham-se pelos mapas das nações e dentro de cada uma delas, nas periferias urbanas
onde os rejeitos humanos dos embates se acumulam.
Volta e meia ali
também as barragens se rompem.
A UE tem hoje 8
milhões de imigrantes sem papéis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de
desempregados.
Após seis anos de
arrocho neoliberal para curar a trombose de 2008, o desemprego, a desigualdade,
o futuro obscuro, o esfarelamento do padrão de vida dos trabalhadores e da
classe média –condensado em uma geração de jovens que dificilmente repetirá a
faixa de renda dos pais-- turbinou a
rejeição ao estrangeiro, criou o medo da
'islamização, alimentou a extrema direita e liberou a demência
terrorista dos alijados.
Não necessariamente
nessa ordem, mas com essa octanagem.
A consciência dessa
longa travessia é um dado fundamental para renovar a ação política num tempo de
supremacia das finanças desreguladas, ungidas à condição de um templo sagrado,
dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência endógena, avesso ao
ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania plena.
Corta. Feche o foco agora no Brasil dos dias
que correm.
É nesse cenário de
guerra aberta que o conservadorismo e seu jornalismo de propagação ‘acusam’ o
governo de não ter jogado o país ao mar em 2008, como tantos ‘estadistas’ do
ajuste fizeram.
O custo de não tê-lo
afogado na hora certa –vertem boquirrotos economistas de bancos-- acarretou os
custos insustentáveis que ora explodem em desequilíbrios fiscais e
orçamentários
O ‘voluntarismo
lulopopulista’ terá que ser pago a ferro e fogo, lambuza nossos ouvidos a voz
pastosa do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, com seu conhecido domínio da
macroeconomia.
Recomenda-se
vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada em 2008 de uma talagada só, como
Joaquim Levy gostaria, encorajado pelo poleiro de tucanos da Casa das Garças.
Só há um jeito de
escapar da loucura disfarçada de racionalidade: tirar a economia do altar
sagrado da ortodoxia e expô-la ao debate democrático do qual participem todas
as forças sociais, unidas em uma frente de propósitos específicos.
Novo corte para um
close na gosma em movimento no Brasil.
Pode-se identifica-la
literalmente na massa de lama derramada de uma barragem da mineradora Vale, que
já atingiu nove municípios de Minas e do Espírito Santo e avança para matar 880
kms de rios, riachos, ribeirões e fontes.
Referência de sucesso
da privatização tucana, recordista em distribuir dividendos a seus acionistas,
a Vale durante anos só deixou 1% do lucro obtido na mineração de Mariana/MG ao
município.
Em compensação,
despejou agora 60 bilhões de litros de lama tóxica no seu entorno, uma lava que viaja
pelo Rio Doce para compartilhar com o Espírito Santo a maior catástrofe
ambiental da história brasileira.
A devastação está
apenas no começo.
A convalescença pode
demorar séculos.
Esse é o tempo
–advertem geólogos-- para que a lama cuspida pela incúria gananciosa se
transforme em solo fértil outra vez.
A Vale não vai cuidar
do interesse público nessa longa mutação.
O governo Dilma já
deveria ter montado um gabinete de crise para enfrenta-la e coagi-la a assumir
custos, no limite com intervenção na empresa para saber a extensão das ameaças
que esconde.
No vácuo, o prefeito
Neto Barros (PCdoB-ES), de B.Guandu (ES), fez o que cabe diante das dimensões
de um roteiro que começa com o colapso do abastecimento de água, avança para
doenças, inclusive câncer, encerra a destruição de cadeias alimentares,
representa a falência de agricultores e de cidades, e desemboca em desemprego,
revolta e migrações para periferias conflagradas.
Neto Barros fechou a
ferrovia da Vale com a patrulha de máquinas da prefeitura até que a presidência
da empresa aceite negociar.
Pergunta: isso é terrorismo? É atentado?
Não.
Mutatis mutante isso
é a reação desesperada à supremacia dos interesses de mercado sobre a segurança
da sociedade, o bem-estar das populações, a preservação das fontes da vida e o
direito ao futuro sonegados por um bombardeio de lama.
Numa entrevista
famosa em 2009, ao portal da revista Veja, FHC justificou a venda da Vale do
Rio Doce – que tinha em Serra o defensor mais entusiasmado, entregou o
ex-presidente-- entre outras razões, ao fato de a 2ª maior empresa de minério
do mundo ter se reduzido - na sua douta avaliação - a um cabide empregos
estatal, 'que não pagava imposto, nem investia'.
Filho dileto do ciclo
tucano das grandes alienações públicas, Roger Agnelli -presidente da Vale do
Rio Doce de 2001 a 2011 -- foi durante anos reportado ao país como a
personificação da eficiência privada reconhecida nessa transação.
Com ele, graças a
ele, e em decorrência da privatização-símbolo que ele encarnou, a Vale
tornou-se uma campeã na distribuição de lucros a acionistas.
Vedete das Bolsas,
com faturamento turbinado pela demanda chinesa por minério bruto, que o Brasil
depois reimportava, na forma de trilhos, por exemplo, --a única laminação para
esse fim foi desativada pelo governo FHC-- a Vale tornou-se o paradigma de
desempenho corporativo aos olhos dos mercados.
Um banho de loja
assegurado pelo colunismo econômico, ocultava a face de um negócio rudimentar,
um raspa-tacho do patrimônio mineral alçado à condição de referência exemplar
da narrativa privatista.
Agora se vê o mar de
lama acumulado por debaixo do veludo.
A 'eficiência à la
Agnelli' lambuzou o noticiário pró-mercadista durante uma década de fastígio.
Da cobertura
econômica à eleitoral, era o argumento vivo a exorcizar ameaças à hegemonia dos
'livres mercados' pelo lulopopulismo.
Projetos soberanos de
desenvolvimento, como o da área de petróleo, eram fuzilados com a munição
generosa da menina dos olhos do neoliberalismo: a Vale de balancetes nas
nuvens.
A política agressiva
de distribuição de lucros aos acionistas --na verdade um rentismo ostensivo,
apoiado na lixiviação de recursos existentes, sem agregar capacidade produtiva
ao sistema econômico-- punha na Petrobrás o cabresto do mau exemplo.
Era a resiliência
estatista nacionalisteira, evidenciada em planos de investimento encharcados de
preocupação industrializante e 'onerosas' regras de conteúdo local.
A teia de acionistas
da Vale, formada por carteiras gordas de endinheirados, bancos e fundos, com
notável capilaridade midiática, nunca sonegou gratidão .
Enquanto o mundo
mastigava avidamente o minério de teor de ferro mais elevado do planeta, a Vale
era incensada a cada balanço, seguido de robustas rodadas de distribuição de
lucros e champanhe.
No primeiro soluço da
crise mundial, em 2008, a empresa administrada pela lógica pró-cíclica dos
rentistas reagiu como tal e inverteu o bote: foi a primeira grande empresa a
cortar 1.300 trabalhadores em dezembro daquele ano, exatamente quando o governo
Lula tomava medidas contracíclicas na frente do crédito, do consumo e do
investimento.
A Petrobrás não
demitiu; reafirmou seus investimentos no pré-sal, da ordem de US$ 200 bilhões
até 2014.
Se a dirigisse um
herói dos acionistas, teria rifado o pré-sal na mesma roleta da Vale: predação
imediatista, fastígio dos acionistas e prejuízos para o país.
Em seu último ano na
empresa, Agnelli --apoiador confesso da
candidatura derrotada de Serra contra Dilma, em 2010-- distribuiu US$ 4 bi aos acionistas.
Saiu carregado nos
ombros da república dos dividendos.
Indiferente aos apelos de Lula, manteve-se até o fim fiel à
lógica que o ungiu: recusou-se a investir US$ 1,5 bi numa laminadora de trilhos
que agregasse valor a um naco das quase 300 milhões de toneladas de minério
bruto exportadas anualmente pela empresa.
Com a derrota de
Serra, o conselho da Vale destituiu o camafeu ostensivo da coalizão
tucanorentista, em abril de 2011.
Agora se sabe que o
centurião de alardeada proficiência administrativa, além de recolher apenas 2%
de royalties ao país, nunca conseguiu reunir recursos para instalar uma simples
buzina, que poderia ter salvo vidas levadas pelo mar de lama que legou ao país,
enquanto brindava os acionistas com bilhões.
Estamos diante de um
exemplo em ponto pequeno da desordem global, que à falta de melhor conceito,
pode ser batizada de barbárie de mercado.
É rudimentar
conceito. Porém é mais encorajador do que dizer apenas e tristemente ‘somos
todos idiotas’. Tomado de carta maior , sugerido en fece del dipuatado mc edegar
preto de rgs
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