Cientistas buscam identificar como o Sars-CoV-2 consegue
chegar ao principal órgão do corpo humano e quais as consequências desse nível
tão complexo da infecção
VS Vilhena Soares
(foto: Valdo Virgo/CB/D.A Press)
À medida que a pandemia da covid-19 avança, cientistas
seguem em busca de pistas que os ajudem a entender como o Sars-CoV-2 age no
corpo humano, principalmente em um dos órgãos mais complexos: o cérebro.
Pesquisadores têm observado o comportamento neural de infectados pelo
coronavírus, além de conduzido análises laboratoriais in vitro, com o objetivo
de responder a uma série de questionamentos. Eles querem saber, principalmente,
de que forma o patógeno afeta as células nervosas e como consegue chegar ao
sistema neural. As expectativas são de que as respostas ajudem no
desenvolvimento de tratamentos e na compreensão dos efeitos da infecção em
pessoas com transtornos neurodegenerativos, como o Alzheimer.
Uma série de sintomas relacionados ao cérebro humano
tem sido registrada em um grande número de pacientes com covid-19, o que
despertou o interesse de cientistas. Um deles é Daniel Martins de Souza,
professor de bioquímica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
coordenador do Laboratório de Neuroproteômica da instituição. “Eu e minha
equipe observamos que a maioria dos pacientes com a infecção sentia anosmia
(perda de olfato), um sintoma que está relacionados ao cérebro. Por conta
disso, partimos para análises em laboratório”, conta.
O grupo brasileiro usou células cerebrais produzidas
em laboratório. Para isso, escolheu uma técnica que transforma células adultas,
como as provenientes da pele, em células-tronco embrionárias, capazes de se
tornar qualquer tipo de parte do corpo humano, como as estruturas neurais.
“Conseguimos fazer esse processo graças a uma parceria com o Stevens Rehen,
pesquisador do Instituto D’OR de Pesquisa e Ensino e da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro)”, conta o professor da Unicamp.
Depois de produzir as células nervosas, os cientistas
as expuseram ao novo coronavírus. “A primeira coisa que nos perguntamos é se
elas tinham uma rota de entrada do patógeno, chamada de ECA2. Essa proteína,
localizada na superfície dessas células, permite a entrada do agente
infeccioso. Constatamos a presença dessa molécula e confirmamos que o patógeno
da covid-19 consegue ter acesso às células nervosas por meio dela”, conta
Souza.
Esse é apenas um primeiro passo da pesquisa. Segundo o
cientista, é necessário, agora, entender o que o vírus faz assim que consegue
entrar nas estruturas nervosas. “Temos também que saber como ele age lá dentro.
Sabemos que o objetivo é se replicar, mas precisamos saber o que ocorre em
nível biomolecular”, detalha. “É como se o DNA fosse uma receita, e as
proteínas produzidas por ele, o bolo. Precisamos decifrar os detalhes desse
processo, temos que entender essa química, pois só ela pode abrir as portas
para novos tratamentos.”
Pelo nariz
Outro ponto que precisa ser esclarecido é como o novo
coronavírus consegue chegar ao sistema neural. “Há teorias de que seria pelo
sangue, pelo nariz, mas, infelizmente, ainda não temos como comprovar. Por
isso, mais pesquisas são necessárias”, enfatiza Souza.
Também a partir da perda de olfato, cientistas da Polônia
decidiram entender o efeito do Sars-CoV-2 sobre o cérebro humano. Em
experimento com camundongos, identificaram que duas proteínas necessárias para
a entrada do coronavírus no organismo — entre elas a ECA2 — são
produzidas por células da cavidade nasal. “Descobrimos que ECA2 e TMPRSS2 são
expressas em células do nariz que ajudam a transferir odores do ar para os
neurônios”, detalham os autores do artigo, liderados por Katarzyna Bilinska,
pesquisadora do Departamento de Genética Celular Molecular da Universidade
Nicolaus Copernicus.
Os pesquisadores também notaram que os camundongos
mais velhos produziam quantidades maiores das duas proteínas, quando comparados
aos mais jovens. “Se isso se repetir em humanos, pode explicar por que os
idosos são mais suscetíveis ao Sars-CoV-2”, enfatizaram os autores do artigo,
publicado na revista Chemical Neuroscience.
Marcelo Lima, professor associado do Departamento de
Fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), acredita que a falha no
olfato é uma pista que pode ajudar a entender como o vírus tem acesso ao cérebro.
“Notamos que, mesmo depois que o paciente da covid-19 se recupera, ele
permanece alguns dias com sentido afetado. Isso mostra que esse efeito no
sistema olfativo é menos trivial do que em infecções causadas por patógenos
semelhantes, como o H1N1”, compara.
Outras vias
O professor da UFPR ressalta que outros órgãos podem servir
como acesso ao cérebro. “Temos alguns estudos, poucos, ainda, que mostram um
padrão de lesão neural não só nas áreas olfativas, mas também no tronco
encefálico. Essa é uma região base do cérebro responsável pela respiração e por
funções cardíacas. Isso mostra que o vírus pode ter acesso ao sistema neural
por outras vias.”
Para o especialista brasileiro, mais estudos poderão
esclarecer dúvidas do tipo, em um processo longo e trabalhoso como o que
ajudou a entender os efeitos neurais provocados por outros patógenos (leia Para
saber mais). “Precisamos de análises feitas com mais amostras. Por enquanto,
apenas especulamos. Com estudos maiores, poderemos dizer se existem efeitos a
longo prazo também, e os danos provocados por esse patógeno em pessoas que já
têm problemas neurais, como o Alzheimer”, justifica.
Marcelo Lima acredita que entender melhor os efeitos
neurais da covid-19 exige, também, investigar o que pode ocorrer com pessoas
que se curarem da doença. “Nós temos uma expressiva população idosa e, enquanto
as pessoas se recuperam da covid-19, temos que saber quais outros efeitos
poderão surgir. Vamos precisar lidar com possíveis complicações neurais? É
possível. Por isso, temos que acompanhar esses pacientes com cuidado”, defende.
“Outro ponto importante é que poderemos nos preparar melhor para possíveis
pandemias que poderão ser causadas por vírus semelhantes, já que esse risco
existe.”
Até convulsão
Feito com 214 pacientes, um estudo chinês, publicado em
março, na revista especializada Jama, mostrou que 36% deles tiveram alguma
manifestação neurológica em decorrência da infecção pelo coronavírus. Perda de
olfato, derrames e convulsões estão entre as complicações. O trabalho,
conduzido por cientistas da Universidade Huazhong, também demonstrou que esses
sintomas eram mais comuns em pacientes com quadros mais severos da covid-19:
45,5% deles enfrentaram esses problemas.
Para saber mais
Efeitos do zika
Inicialmente, os pesquisadores investigaram os efeitos
neurais do zika vírus em fetos, devido ao grande número de casos de crianças
que nasceram com má-formação neural (microcefalia). Depois, cientistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também observaram que o patógeno
tem potencial para afetar células neurais de adultos.
Em um estudo publicado, em setembro de 2019, na
revista Nature Communications, os brasileiros detalharam como infectaram o
cérebro de ratos diretamente com o vírus. Em seguida, observaram que os animais
apresentaram perda de memória e problemas motores, mesmo depois de curados da
infecção. Os efeitos do zika vírus no cérebro também fizeram com que muitos
cientistas começassem a usar o patógeno em pesquisas voltadas para o combate a
tumores neurais.
De tontura a
derrame
As consequências da ação do coronavírus sobre o
cérebro também são alvo de estudos científicos. “Atualmente, temos uma compreensão
insuficiente dos sintomas neurológicos nos pacientes com covid-19, sejam eles
decorrentes de doenças críticas sofridas por muitos dos infectados, sejam em
razão da invasão direta do Sars-CoV-2 no sistema nervoso central”, afirma ao
Correio Abdelkader Mahammedi, professor assistente de radiologia e
neurorradiologista da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos.
Mahammedi é líder de uma das mais recentes análises
sobre o tema. Ele e sua equipe estudaram imagens neurológicas de 725 pacientes hospitalizados
com covid-19, confirmada entre 29 de fevereiro e 4 de abril. Os
cientistas descobriram que 59% dos pacientes relataram ter sofrido um estado
mental alterado, e 31%, um acidente vascular cerebral (AVC). Os pacientes
também apresentaram dor de cabeça (12%), convulsão (9%) e tontura (4%), entre
outros sintomas.
Entre os pacientes, 108 (15%) apresentaram sintomas
neurológicos graves e foram submetidos a mais imagens do cérebro ou da coluna
vertebral. “Desses, que tinham idade entre 16 e 62 anos, 10 sofreram derrame e
dois tiveram sangramento cerebral”, detalha Mahammedi. “Observamos que o estado
mental alterado era mais comum em adultos mais velhos.”
Para a equipe, o que mais chama a atenção nas
conclusões é a ligação da infecção pelo coronavírus à alteração do estado
mental e à ocorrência de derrame. Por serem complicações mais prevalentes, elas
que podem funcionar como alerta. “Esses padrões recém-descobertos podem ajudar
os médicos a reconhecerem mais cedo as associações com a covid-19 e, possivelmente,
iniciarem as intervenções precocemente”, frisa Mahammedi.// tomado de correio brasiliense
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