Cientistas
relatam segundo caso de remissão do HIV após transplante
Não se
pode falar em cura da Aids, ressaltam os cientistas envolvidos no estudo,
publicado na revista Nature
PO Paloma
Oliveto
Imagem de
microscópio mostra vírus HIV acumulado na superfície de uma célula. (foto:
University of Missouri Health System/Divulgação)
Desde 1982,
quando a Aids foi descrita pela primeira vez pelo Centro de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano, apenas um portador da doença entrou
em remissão total, sem sinais da existência do vírus em seu organismo. Agora,
um grupo internacional de pesquisadores anunciou o segundo caso em quase quatro
décadas de um indivíduo que, depois de passar por um transplante de
células-tronco, viu-se livre do HIV.
Não se pode
falar em cura da Aids, ressaltam os cientistas envolvidos no estudo, publicado
na revista Nature. Mas, como frisa o líder da pesquisa, Ravindra Gupta,
da Universidade College Londres e da Universidade de Cambrige, “isso traz
esperança para novas estratégias de tratamento que, juntas, possam eliminar o HIV”.
Ainda que hoje a síndrome da imunodeficiência adquirida seja abordada como uma
doença crônica — e não mais letal —,15 milhões dos 37 milhões de infectados não
têm acesso à terapia antirretroviral e, mesmo entre os tratados, os casos de
resistência aos medicamentos são preocupantes. “A supressão durável do HIV sem
necessidade de drogas é, portanto, uma prioridade global urgente”, diz o
artigo.
Chamado de
Paciente de Londres, o homem descrito no trabalho, que será apresentado na
noite desta terça-feira (5/3), na Conferência sobre Retrovírus e Infecções
Oportunistas, em Washington, repete o êxito do Paciente de Berlim. Em 2007, o
norte-americano Timothy Brown, HIV-positivo, foi submetido a um transplante de
medula óssea, onde são formadas as células do sistema imunológico, entre
outras, para tratar uma leucemia. Depois de passar pela radiação que destruiu a
própria medula — procedimento padrão nessa cirurgia —, ele recebeu a de um
doador imune ao vírus. Esse homem carregava uma versão mutante de moléculas
que, posicionadas na superfície das células de defesa, funcionam como
receptoras, permitindo a entrada de substâncias para o núcleo celular.
A grande
jogada do HIV é se unir a esses receptores — em especial, a um produzido pelo
gene CCR5 — para, então, adentrar as células de defesa do organismo. Uma vez
lá, o vírus usa o maquinário celular para inserir seu material genético. O
doador de medula de Timothy Brown tinha uma rara condição, presente em 1% da
população mundial: uma variante do CCR5 que não produz o receptor mais usado
pelo vírus para promover a infecção. Brown parou de usar a terapia
antirretroviral e, ainda hoje, não apresenta sinais da presença do HIV. Apesar
do sucesso desse caso, procedimentos semelhantes que se seguiram a ele não
surtiram o mesmo efeito.
O tratamento
do Paciente de Londres, que prefere o anonimato, foi bem menos tóxico, contudo.
Diagnosticado com HIV em 2003, ele entrou no regime antirretroviral, com a
combinação de três medicamentos, em 2012. No fim daquele mesmo ano, o homem
descobriu um linfoma Hodgkin grau 4, o mais avançado. A quimioterapia de
primeira linha não fez o efeito desejado, e os médicos resolveram tentar o
transplante de medula óssea. Embora nenhum doador 100% compatível tenha sido
identificado, havia um no cadastro mundial que chegava próximo e era portador
da variante do CCR5. “Mas o tratamento que fizemos foi diferente do Paciente de
Berlim, porque não envolveu radioterapia”, esclarece o coautor do estudo, Ian
Gabriel, pesquisador do Imperial College Londres.
Assim como
Timothy Brown, o Paciente de Londres teve um início de rejeição, mas que foi
controlada. Ele continuou nos antirretrovirais por mais 16 meses, quando os
médicos suspenderam o tratamento. A partir daí, os exames mostraram que as
células imunológicas do homem continuam sem o receptor CCR5 e, portanto, livres
do HIV. Ele já se encontra em remissão há 18 meses. “Ao alcançar a remissão em
um segundo paciente usando uma abordagem semelhante, mostramos que o Paciente
de Berlim não era uma anomalia, e que foi realmente as abordagens de tratamento
que eliminaram o HIV nessas duas pessoas”, disse Gupta. Quando o caso de Brown
foi descrito, parte da comunidade científica levantou a suspeita de que o
transplante não tivesse relação com a eliminação do vírus.
Os autores
do estudo destacam que, por ser uma cirurgia arriscada e que depende de
doadores compatíveis, o transplante de medula óssea não pode ser considerado um
tratamento para todos os pacientes de HIV — exceto aqueles que necessitem do
procedimento por terem desenvolvido doenças como leucemia e linfoma. Porém,
dizem que o sucesso obtido pelo Paciente de Londres indica um caminho promissor
para novas estratégias terapêuticas: prevenir que o gene CCR5 se expresse.
“Enquanto
esse tipo de tratamento obviamente não é prático para tratar os milhões de
pessoas ao redor do mundo vivendo com HIV, relatos como esses podem ajudar no
desenvolvimento da cura do HIV”, opina Andrew Freedman, pesquisador de doenças
infecciosas da Universidade de Cardiff, que não participou do estudo. “A cura
provavelmente está a muitos anos distante de nós e, até lá, precisamos
continuar apostando no rápido diagnóstico e no início da combinação da terapia
antirretroviral crônica. Essa terapia é altamente efetiva tanto em restaurar
uma expectativa de vida quase normal quanto na prevenção da transmissão para
outras pessoas.”
Resistência
adquirida
- O HIV infecta o organismo entrando nas células CD4, do sistema imunológico. Uma vez no interior, ele usa o maquinário da própria célula para replicar seu material genético.
- Para conseguir entrar na CD4, o HIV se junta a receptores da superfície da célula. O mais comum é o CCR5. Pessoas que têm duas cópias mutantes do alelo CCR5 são resistentes à variante HIV-1 do vírus. Sem “permissão” do receptor, o vírus não entra na célula e, portanto, não as infecta.
- O paciente de Londres foi diangosticado em 2012 com linfoma de Hodgkin avançado. Trata-se de um câncer do sistema linfático. Para tratar a doença, ele foi submetido a quimioterapia e, em 2016, a um transplante de células-tronco hematopoiéticas (precursoras das células sangúineas). O doador tinha duas cópias mutantes do CCR5.
- Além de destruir as células cancerosas, a quimioterapia ajudou a matar as células do HIV que se dividiam.
- Com o transplante, as novas células do paciente começaram a nascer com a variação do doador. Dessa forma, elas não expressam o receptor CCR5, impedindo que o HIV consiga adentrá-las.
- O paciente de Londres está há 18 meses em remissão e as células do seu sistema imunológico continuam não expressando o receptor CCR5.
PALAVRA
DE ESPECIALISTA
"Outros
pacientes tratados de forma similar desde o Paciente de Berlim não tiveram
resultados semelhantes. Se nós conseguirmos entender melhor por que o
procedimento funciona em alguns pacientes e não em outros, estaremos mais perto
do nosso objetivo de curar o HIV. No momento, o procedimento ainda é envolto de
muitos riscos para ser usados em pacientes que estão bem. Mas isso pode
encorajar pacientes HIV que precisam de um transplante de medula óssea a
considerar um doador CCR5 negativo, se possível"
Graham
Cooke, infectologista e professor de medicina do Imperial College Londres
//TOMADO DE CORREIO BRAZILIENSE
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