Estudo mostra como o ser humano consegue escutar sons
silenciosos; entenda
Há indivíduos em que ocorre cooperação entre as áreas
auditiva e visual do cérebro diante de um estímulo que deveria silenciar uma
delas, segundo cientistas britânicos
CG Camilla Germano*
A habilidade de escutar imagens, flashes e
movimentos silenciosos ficou popularmente conhecida em GIF’s espalhados pela
internet. Um famoso é o de torres de alta-tensão “brincando” de pular cordas.
Mesmo sem som, há quem, ao ver o GIF, escute o barulho da torre de ferro
pulando e estremecendo o chão. O mesmo acontece quando um pianista simula tocar
uma música com os dedos e consegue escutá-la. A façanha é resultado de uma
habilidade chamada ouvido visual. Segundo pesquisadores da City, University of
London algumas pessoas podem ser mais suscetíveis a desenvolvê-la e outras
podem aprendê-la. O estudo é o primeiro a fornecer informações sobre mecanismos
cerebrais implícitos nesse mecanismo que, para os autores, é similar ao dos
sinestésicos.
A sinestesia é um distúrbio neurológico em que um estímulo
de um sentido causa reações em outro, criando uma mistura sensorial entre
visão, olfato, audição, paladar e tato. Por exemplo, para alguém com esse
problema, o número 5 pode ser sempre verde, a segunda-feira ter gosto adocicado
e um solo de guitarra produzir imagens de bolhas. “Já sabíamos que algumas
pessoas ouvem o que veem. Luzes indicadoras de carros, placas de neon piscando
e movimentos das pessoas enquanto andam podem desencadear uma sensação
auditiva. O estudo revela diferenças individuais que ocorrem normalmente na
interação entre os sentidos de visão e audição”, explica Elliot Freeman,
professor sênior em psicologia na instituição britânica e autor do estudo, cuja
publicação está prevista para a edição de junho do Journal of Cognitive
Neuroscience.
A maioria das pesquisas na área é baseada na teoria de que
as regiões do cérebro responsáveis pelos processamentos visual e auditivo
normalmente competem. Freeman e os colegas sugerem que essas áreas cerebrais
podem cooperar em pessoas que têm o ouvido visual. Uma hipótese é de que os
sinestésicos têm conexões cruzadas raramente ricas entre partes específicas do
cérebro. Outra é de que todos têm essas conexões, mas elas são mais ativas em
sinestésicos e inibidas em outros.
“A sinestesia que ocorre no GIF de uma torre de energia
pulando corda é chamada pela literatura científica de sinestesia auditiva de
movimento. Ela ocorre em função de uma resposta auditiva evocada por um
estímulo visual em movimento. Toda função mental, como atenção, memória e
percepção, tem um substrato neurobiológico (estruturas, vias neurais e um
padrão de neurotransmissão), e isso se aplica ao ouvido visual”, detalha Rui de
Moraes Jr., professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade de
Brasília (UnB).
Treinamento
Para explorar como as partes visuais e auditivas do cérebro
interagem em ouvintes visuais, os pesquisadores britânicos usaram, em
voluntários, a estimulação de corrente alternada transcraniana (tACS, na sigla
em inglês). Essa técnica é um tipo de estimulação cerebral por meio de corrente
alternada fraca, usada por neurocientistas para alterar temporariamente a
atividade cerebral de um paciente. A técnica foi escolhida para medir mudanças
no comportamento ou no desempenho dos participantes da pesquisa durante a
execução de uma tarefa capaz de estimular o ouvido visual, além de responder a
questões sobre as partes do cérebro envolvidas.
O primeiro teste contou com 36 pessoas, incluindo 16 músicos
clássicos da London Royal College of Music. Os participantes foram submetidos a
tACS enquanto assistiam a sequências auditivas e visuais de código Morse. A
técnica foi aplicada na parte de trás da cabeça ou nos lados, onde estão
localizadas as áreas visual e auditiva do cérebro, respectivamente. Os
participantes foram classificados em ouvinte visual ou não visual tendo como
base os próprios relatos sobre ouvir flashes silenciosos.
A equipe percebeu que os músicos eram significativamente
mais propensos a relatar experiências de audição visual. Para os cientistas,
isso pode ocorrer por que o treinamento musical promove uma atenção conjunta
tanto ao som da música quanto à visão dos movimentos coordenados do maestro ou
de outros músicos. “A pesquisa sugere que algumas pessoas podem ser
naturalmente mais suscetíveis a desenvolver o ouvido visual e também que a
habilidade de experimentá-lo pode ser uma resposta treinável, o que explicaria
por que os músicos eram mais propensos a ter a habilidade”, destaca Freeman.
Também constatou-se que, nos participantes de ouvido não
visual, a estimulação nas áreas auditivas reduziu significativamente o
desempenho auditivo, mas melhorou o visual. Enquanto o padrão oposto foi
encontrado na estimulação na área visual: pior visão e melhor audição. Segundo
os cientistas, esse padrão recíproco sugere uma interação competitiva entre as
áreas visuais e auditivas do cérebro, cada uma restringindo o desempenho da
outra. Esse cenário foi notavelmente ausente em ouvintes visuais, o que sugere
que suas áreas auditiva e visual não estavam competindo, mas cooperando.
Um segundo experimento foi conduzido com 16 participantes
para verificar se mesmo pessoas sem consciência do ouvido visual usam, à vezes,
áreas auditivas do cérebro para fazer julgamentos puramente visuais. Os
cientistas descobriram que a tACS nas áreas auditivas do cérebro afeta a
exatidão dos julgamentos visuais quase tanto quanto estimula as áreas visuais.
“Esse tipo de fenômeno chama a atenção porque são comuns,
como o próprio pesquisador exemplifica com o GIF das torres. Mas é difícil
entender e classificar o ouvido visual porque é uma experiência individual. Não
há como saber se uma pessoa realmente ouve ou vê algo a partir de um estímulo,
ou se é apenas um reflexo imaginário do cérebro”, pondera Daniel Mograbi,
professor-assistente do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e PhD em psicologia e neurociências pela
King’s College London.
Freeman conta que ele e a equipe também se surpreenderam ao
descobrir que, de forma geral, os participantes com audição visual apresentaram
melhor desempenho em tarefas visuais e auditivas. “Talvez, sua cooperação
audiovisual beneficie o desempenho porque mais partes do cérebro estão
envolvidas no processamento de estímulos visuais. Essa cooperação também pode
beneficiar a performance musical, explicando por que os músicos que testamos
relataram ter ouvido visual”, cogita o pesquisador.
* Estagiária sob supervisão de Carmen Souza // TOMADO DE
CORREIO BRAZILIENSE
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