Os ecos da ditadura
na economia brasileira
Controle de preços de energia e gasolina e incentivos à
indústria repetem políticas do regime militar Tópicos da matéria: 50 anos do
golpe
CÁSSIA ALMEIDA LUCIANNE CARNEIRO HENRIQUE GOMES BATISTA CLARICE
SPITZ
RIO - Meio século após o golpe de 1964, que mergulhou o
Brasil na ditadura, fantasmas da política econômica do regime militar rondam o
país. A manipulação de preços, que adia para o futuro uma inflação represada
hoje, e uma estratégia industrial de escolha de campeãs nacionais, com forte
incentivo governamental, ressurgem, repetindo em parte a fórmula usada pelos
governos militares para segurar o custo de vida e puxar o crescimento
econômico.
Se hoje o governo da presidente Dilma Rousseff segura preços
de combustíveis e energia elétrica, ao mesmo tempo em que manifestações
populares levaram a um adiamento, por estados e prefeituras, do reajuste dos
transportes públicos, o regime militar manipulou a coleta de informações nos
índices oficiais de inflação, para mantê-los artificialmente baixos.
Especialistas lembram ainda que a atual política industrial,
que exige de fornecedores da Petrobras a produção com conteúdo local e leva o
BNDES a escolher “campeãs nacionais”, guarda inspiração no primeiro e no
segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND, dos governos Médici e Geisel).
Não por acaso, a política industrial de Dilma ganhou o nome de Brasil Maior — o
lema, no regime militar, era o Brasil Grande.
Na ditadura, arrocho. Hoje, renda sobe
Um dos formuladores do Plano Real, o economista Edmar Bacha
compara o controle de preços no governo Dilma à política adotada pelo governo
militar com o Conselho Interministerial de Preços (CIP) nos anos 1970. Ele cita
o aumento de apenas 1,5% dos preços administrados em 2013, enquanto a inflação
dos preços livres foi de 7,5% no ano passado.
— Estamos vendo o inflacionismo de volta, um inflacionismo
muito perverso, do tipo do Delfim (Netto), quando a inflação estava em 20%. Ele
institui os controles, de forma muito inteligente. Delfim tinha não somente a
lista dos produtos, mas a dos locais onde os coletadores iam buscar os preços
(para medir a inflação). Para estes produtos e para estes locais, você
controlava os preços com o CIP (garantindo o abastecimento no local). Não é que
os índices estivessem sendo falsificados. E agora temos uma réplica muito torta
deste mesmo processo de controle de preços de energia, de petróleo, dos ônibus
— afirma o diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica da Casa das
Garças.
No caso da inflação, a ditadura contou, porém, com outro
mecanismo para conter os preços, que, em 1964, subiram 92%: o arrocho salarial.
Hoje, por outro lado, os brasileiros desfrutam de nove anos seguidos de ganhos
de renda.
A fórmula de reajuste dos salários criada pelo então
ministro da Fazenda Mario Henrique Simonsen no primeiro governo militar de
Castelo Branco provocou perdas. Os trabalhadores da indústria viram a renda
cair até 15%, entre 1965 e 1967. Embutia-se a metade da inflação prevista sobre
o salário médio dos últimos 24 meses mais a taxa de produtividade. Mas as
previsões de inflação do governo sempre foram subestimadas, lembra o decano da
PUC-Rio Luiz Roberto Cunha, que foi secretário adjunto do CIP entre 1976 a
1979:
— Você achatou salários, o que acabou sendo um elemento
importante para derrubar a inflação, mas a inflação não caiu tanto quanto se
esperava, pois já tinha correção monetária (criada em 1964).
Concentrar para crescer
A economista Maria da Conceição Tavares, que travou seguidas
discussões com seu amigo Simonsen, vê apenas na energia semelhanças entre a
tentativa de controlar a inflação no regime militar e o cenário atual:
— Semelhanças hoje são basicamente a energia. Sempre é a
energia, que é muito difundida na economia. Só que no regime militar houve o
congelamento dos salários; hoje não fazemos isso. Sempre se tenta dar uma
segurada nos custos básicos. Salário e energia são os insumos mais pesados.
A política industrial de hoje também traz semelhanças com o
período militar. Mas, segundo o economista Claudio Frischtak, da InterB.
Consultoria, se os PNDs tinham visão estratégica, o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) é um “amontoado de obras”. Francisco Eduardo Pires de Souza,
da UFRJ e do BNDES, diz que falta foco à política industrial atual.
Para Bacha, a política industrial do governo Dilma repete
diretrizes do PND, porém de forma ainda mais intervencionista. Em vez das cotas
de importações daquela época, está em vigor hoje a exigência de conteúdo local.
— Um industrial que produza uma tomada de três pontos tem
que negociar um a um com algum tecnocrata do Ministério de Indústria e
Comércio, especificando o conteúdo dos pinos, a natureza dos plásticos e quanto
cada um desses itens tem de conteúdo nacional. É uma maluquice. Nem o Geisel
ousou fazer esse microgerenciamento que a gente tem hoje.
Para ele, o PAC é uma tentativa de repetir o PND, embora não
esteja conseguindo gerar o volume de investimentos daquela época.
Cunha afirma que “a busca do crescimento a toda força, no
caso dos militares para justificar sua intervenção e a ditadura, é uma das
heranças nefastas do ponto de vista econômico”:
— A grande herança negativa é essa. Ter tirado do setor
privado a sua capacidade de autonomia, criado uma dependência muito grande —
diz o decano da PUC.
Segundo Cunha, davam-se incentivos para exportação,
agricultura, pesca, reflorestamento:
— Qualquer coisa tinha incentivo. A história do
reflorestamento era muito interessante. Você tinha um incentivo para o reflorestamento,
podia plantar pinheiro para fazer papel. Teve um sujeito na época que derrubou
toda a Mata Atlântica na região de Correias, em Petrópolis, e plantou uma
floresta de pinheiros. Mudou toda a ecologia da região, com custo zero, pago
com incentivo fiscal.
Cunha afirma que a estratégia econômica do regime militar
era concentrar para crescer. Criou-se uma comissão de fusão e incorporação,
inspirada na ideia do modelo japonês:
— Dava-se incentivo para concentrar. Ter empresas grandes
para poder crescer. Um horror — diz o professor da PUC.
Essa estratégia foi adotada nas telecomunicações, lembra o
professor do Instituto de Economia da UFRJ Fábio Sá Earp. As 930 empresas
privadas foram reduzidas a 33, para dar eficiência:
— Os militares não tinham o menor sentido da revolução que
eles estavam fazendo. Eles tinham preocupação com duas coisas: ligação
interurbana do Rio para Brasília demorava muito para acontecer, e em diversas
áreas da Amazônia não chegava o sinal da Rádio Nacional, mas chegava o da rádio
de Havana (Cuba). Eles não tinham a menor dimensão do impacto cultural que a
televisão em escala nacional iria trazer para o Brasil. Eles queriam resolver
esses dois problemas bem localizadinhos e acabaram montando uma infraestrutura
que mudou culturalmente o país.
Inflação reprimida
No caso da inflação, o economista-chefe da Confederação
Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, ex-diretor do Banco
Central (BC), lembra que o descontrole de preços já era um problema antes do
golpe. E, para isso, o regime militar recorreu aos artifícios para segurar os
preços. Afinal, a alta da inflação inibia os investimentos. Segundo ele, no
primeiro trimestre de 1964, a inflação chegou a 25%, o equivalente a 150%
anuais.
O recente pacote de medidas do governo para socorrer o setor
elétrico, segundo Bacha, traz uma pressão adicional para a inflação futura:
— Agora mesmo, com esse socorro ao setor elétrico,
acumulamos mais uma boa dose de inflação reprimida dos preços de energia, que
terá que ser explicitada. E tem uma inflação reprimida que está quebrando o
setor energético, está quebrando a Petrobras.
O secretário Nacional de Economia Solidária, o austríaco
Paul Singer, não se mostra preocupado com a inflação:
— Estamos com o menor nível de inflação que já vivi desde
que cheguei ao Brasil, nos anos 1940. Uma inflação de 6% ao ano é ridícula
perto do que já vivemos. Colaborou Luciana Rodrigues . tomado de o globo de br
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