Pesquisadores recorrem ao mapeamento do genoma do Sars-CoV-2
e à identificação de vulnerabilidades no DNA humano na tentativa de conter a
pandemia. O trabalho pode impulsionar a criação de melhores tratamentos e
diagnósticos, além de ajudar a monitorar o vírus
por Vilhena Soares
(foto: Editoria de ilustração)
O sequenciamento do DNA, que começou há 20 anos,
revolucionou a forma como a medicina é feita. Essa técnica proporcionou exames
e tratamentos médicos mais refinados em áreas diversas, como a oncologia.
Atualmente, a genética também tem sido usada como uma das principais armas
no combate
à covid-19. Com a ajuda dessa tecnologia, cientistas têm conseguido identificar
variações de cepas do novo coronavírus e seus pontos fracos, informações
valiosas para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e métodos de
diagnóstico mais precisos. Os cientistas também acreditam que os estudos feitos
com base no estudo do DNA humano podem ajudar a revelar quais pessoas são mais
vulneráveis a essa nova enfermidade.
O primeiro mapeamento genético do Sars-CoV-2 foi feito em
janeiro, um mês depois dos primeiros registros da infecção, com amostras
colhidas em um dos pacientes da cidade chinesa de Wuhan, considerada o
epicentro da pandemia. Graças a essa análise inicial do RNA do vírus, os
pesquisadores chegaram à primeira descoberta importante: constataram que o
transmissor da covid-19 pertencia à família dos coronavírus e, por isso, tinha
semelhanças com surtos recentes, como o da síndrome respiratória do Oriente
Médio (Mers), em 2003.
Com a acelerada propagação da covid-19, o Sars-CoV-2 sofreu
uma série de alterações na sua estrutura, o que demanda que o mapeamento
genético do vírus seja feito frequentemente. O Brasil foi um dos países que
fizeram essa tarefa em menos tempo: apenas 48 horas depois do primeiro caso da
doença ter sido registrado em território brasileiro, em 26 de fevereiro. “Esse
mapeamento foi feito rapidamente porque já estávamos preparados, realizávamos
pesquisas de sequenciamento com outro patógeno, o zika”, conta ao Correio Ester
Cerdeira Sabino, uma das responsáveis pelo trabalho e pesquisadora da
Universidade de São Paulo (USP). A cientista e sua equipe mostraram que a
amostra analisada, de um paciente vindo da Itália, tinha semelhanças genéticas
com as do patógeno oriundas da Alemanha e recolhidas em janeiro.
O grupo de pesquisa expandiu a investigação e, no momento,
avalia mais de 500 amostras de brasileiros com a covid-19 para entender como o
vírus tem se modificado durante a pandemia. “Nosso estudo já mostrou, por
exemplo, que, das mais de 100 linhagens que entraram no país, apenas três
vindas da Europa conseguiram fazer uma cadeia de transmissão, e que elas chegaram
entre o fim da última semana de fevereiro e a primeira semana de março”,
detalha Ester Sabino.
Segundo a pesquisadora, o mapeamento é uma tarefa essencial
para o combate à pandemia. “Esse tipo de pesquisa são tijolinhos que
construímos. Ao montar o mapa genético do vírus, ele vai ser usado como base
para cientistas que buscam formas de combatê-lo”, explica. “Por exemplo,
cientistas que testam antivirais podem ver se as alterações dos genes
interferem na ação dos remédios. O mesmo ocorre com vacinas e diagnósticos, que
podem ter o efeito modificado devido a essas alterações”, afirma.
A médica também ressalta que o mapeamento do vírus é algo
que precisará ser feito durante toda a pandemia e por pesquisadores de todo o
mundo. “As perguntas que temos sobre esse vírus não vão ser respondidas com
apenas uma análise genética, precisamos do trabalho de todos especialistas, e
que eles troquem essas informações. Aqui no Brasil, temos muitos nessa área.
Com todos esses trabalhos que têm sido feitos nos últimos meses, vamos
conseguir reunir muitas informações valiosas sobre a covid-19”, aposta.
UnB
Entre as dúvidas em relação à covid-19, estão o fato de
algumas pessoas adquirem formas graves da enfermidade e outras, não, e por que
as pessoas respondem de forma diferente ao tratamento. As respostas para essas
questões podem estar no DNA humano, segundo especialistas da Universidade de
Brasília (UnB) que investigam esses fenômenos em parceria com instituições de
ensino internacionais.
O grupo pretende coletar 12 mil amostras de sangue de
pessoas com perfis diversos que tiveram a enfermidade. “Estamos reunindo dados
de indivíduos com idade e sexo distintos, além de informações médicas, como
tratamentos usados e sintomas apresentados”, conta Silviene Oliveira,
pesquisadora do Departamento de Genética e Morfologia da UnB e uma das
cientistas envolvidas no projeto.
Os pesquisadores pretendem realizar o mapeamento genético
das amostras recolhidas para analisar se alterações no DNA podem estar
relacionadas à forma como os voluntários manifestaram a doença. “Reuniremos o
máximo de informações possíveis para entender se existe alguma explicação
genética para que um tratamento tenha sido positivo para uma pessoa e para
outra, não, por exemplo, ou por que um indivíduo sofreu com mais sintomas em
comparação com outros”, diz a cientista.
Além do Brasil (em Brasília e em outras cidades), as
amostras estão sendo recolhidas na Europa e em outros países da América Latina.
“A maioria dos estudos genéticos é feita com foco apenas na população europeia
e na americana. Nesse trabalho, temos dados mais diversos e próximos do nosso
país, como Argentina, Chile, México, além da Espanha e da Itália. Essa
variedade é muito importante porque somos mais miscigenados, e isso pode
influenciar muito o resultado”, afirma Silviene Oliveira.
Caso a pesquisa consiga mostrar alterações genéticas
relacionadas à covid-19, as informações poderão ser valiosas no atendimento aos
pacientes. “Se nós encontrarmos marcadores relacionados à forma grave, por
exemplo, podemos avaliar a necessidade de realizar o tratamento com mais
cuidado, mantendo o paciente no hospital por mais tempo”, ilustra. “Isso é algo
semelhante ao que temos no câncer, hoje. Se você tem determinada mutação
relacionada a um tumor específico, sua chance de ter a doença aumenta, e, com
isso, seu cuidado também precisa ser maior.”
Fita simples
Os genes contêm as informações responsáveis para a
reprodução e a replicação dos seres vivos. No caso dos humanos, esse material
está presente no DNA, uma estrutura de fita dupla. Em alguns organismos, está
no RNA, que também é uma fita, só que simples. O vírus da covid-19 faz parte do
grupo de vírus que têm RNA como base de sua formação, chamados de retrovírus,
assim como o sarampo.
"Cientistas que testam antivirais podem ver se as
alterações dos genes interferem na ação dos remédios. O mesmo ocorre com
vacinas e diagnósticos, que podem ter o efeito modificado devido a essas
alterações”
Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Universidade de São Paulo
Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Universidade de São Paulo
Palavra de especialista
Ferramenta para atualizar vacinas
“A genética tem nos ajudado com pilares das pesquisas sobre
a covid-19. O primeiro é o sequenciamento genético do vírus, que nos ajuda a
conhecê-lo. Temos, também, a análise de DNA de quem contraiu a enfermidade,
para saber se alguma variação genética pode estar relacionada à gravidade da
doença. Por fim, temos o uso dessa tecnologia para o desenvolvimento de mais
métodos de diagnóstico. O PCR, que é o mais apurado, não é suficiente. Nosso
grupo tem trabalhado em um teste diagnóstico com base no mapeamento genético
para auxiliar essa área, justamente para cumprir essa demanda e gerar
resultados mais apurados. Acredito, também, que essa tecnologia será
imprescindível no futuro. Depois da pandemia, vamos precisar de recursos para
controlar a covid-19, e, para realizar essa tarefa, será necessário manter o
mapeamento do vírus circulante no país, pois ele pode sofrer mutações. Essas
mudanças têm que ser acompanhadas a fim de manter as vacinas eficazes. É o
mesmo caso da gripe. A cada ano, precisamos mudar a fórmula da imunização para
garantir que ela funcione." Gustavo Campana, patologista e
diretor médico da Dasa (Grupo do Laboratório Exame).
Maior risco respiratório
O DNA humano e sua possível influência na covid-19 também
foram tema de um estudo realizado por cientistas alemães. No trabalho, a equipe
mostrou indícios de que uma parte do DNA do Sars-CoV-2 pode estar relacionada a
maiores danos respiratórios. Os pesquisadores analisaram amostras genéticas de
3.199 pacientes e observaram que os indivíduos que tinham um grupo de genes
localizado no terceiro cromossomo apresentaram 70% mais risco de apresentar
insuficiência cardíaca.
“Percebemos que a presença de um certo variante de DNA
aumentou consideravelmente a probabilidade de ocorrência de sintomas graves”,
ressalta, em comunicado, Hugo Zeberg, pesquisador do Instituto Max Planck e um
os autores do trabalho, publicado no site de depósito de pesquisas médicas
Biorxv.
Os especialistas também destacam que a alteração genética
observada pode ter sido herdada dos neandertais, uma população de hominídeos pré-históricos
que viveu entre 200 mil e 30 mil anos atrás. “Nosso estudo ainda é inicial, e
precisamos que mais análises sejam feitas, mas acreditamos, sim, que essa
variante do genoma relacionada aos neandertais possa estar relacionada a
efeitos mais severos da covid-19”, frisa Zeberg. // tomado de correio brasiliense
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