Testada em ratos, vacina criada com o vírus enfraquecido
retarda o desenvolvimento do glioblastoma, um câncer cerebral incurável, e
aumenta o tempo de sobrevida em 66%
VS Vilhena Soares
O zika vírus é temido pela capacidade de exterminar células
neurais, característica que pode causar microcefalia e outras más-formações
cerebrais em fetos de gestantes infectadas. Pesquisadores internacionais
transformaram esse mecanismo negativo em vantagem no tratamento de tumores
cerebrais. Eles retardaram o desenvolvimento do glioblastoma, um câncer severo
e incurável, em ratos usando uma vacina cuja fórmula tem parte do genoma do
zika. Os resultados foram animadores e sinalizam que a abordagem pode ser
preventiva e também usada para aumentar a sobrevida de paciente oncológicos.
O glioblastoma é um câncer cerebral que, quase sempre,
retorna após a retirada cirúrgica e outros tipos de terapia. Especialistas
explicam que uma das principais razões para a recorrência rápida e inevitável
desse carcinoma é a presença de células-tronco residuais de glioblastoma após
as intervenções. “As células-tronco cancerígenas são resistentes à terapia
atual, incluindo radiação e quimioterapia. Assim, o desenvolvimento de uma
terapia eficaz para eliminá-las é algo urgentemente necessário”, detalha ao
Correio Pei-Yong Shi, virologista do Departamento de Medicina da Universidade
do Texas (EUA), e líder do estudo, publicado
na revista mBio. A pesquisa contou com a participação de pesquisadores da
Academia Chinesa de Ciências Médicas Militares.
Como o zika infecta células progenitoras de neurônios em
cérebros fetais, Pei-Yong Shi e a equipe decidiram testar se o patógeno poderia
ser usado para infectar e matar seletivamente as células-tronco de glioblastoma
que contribuem para a recorrência do câncer. “Fizemos a conexão de que, talvez,
esse vírus também pudesse infectar as células de glioblastoma porque elas têm propriedades similares às
células-tronco neurais”, conta o cientista.
O primeiro passo dado pela equipe consistiu em determinar se
existia uma maneira segura de usar o vírus zika para atacar apenas as células
cancerígenas, ou seja, sem atingir células neurais saudáveis. Para isso, eles
desenvolveram um vacina com uma pequena parte do vírus, que foi chamada
ZIKV-LAV. A estratégia é parecida com a usada, por exemplo, em vacinas contra a
dengue e febre atenuada, que usam o
vírus atenuado para induzir a produção de anticorpos.
Quando a equipe injetou ZIKV-LAV no cérebro de camundongos,
não foram observados efeitos negativos na saúde das cobaias, como perda de
peso, anormalidades comportamentais, perda de apetite, depressão, letargia ou
autolesão. Os animais também responderam normalmente em testes de ansiedade e
função motora.
Em uma segunda etapa, os pesquisadores implantaram células
de glioblastoma humano nos ratos que receberam a vacina ZIKV-LAV. Dessa vez, os
roedores apresentaram atraso significativo no desenvolvimento do tumor. Além
disso, houve prolongamento do tempo
médio de sobrevivência dos roedores para cerca de 50 dias, contra 30 dias em
camundongos que receberam as células de
glioblastoma humano, mas não foram vacinados. O aumento é de 66%.
Para entender os efeitos da vacina, os cientistas
sequenciaram todas as mensagens de RNA expressas nas células cancerígenas dos
ratos e descobriram que a fórmula usada desencadeou uma forte resposta
antiviral nas células tumorais, induzindo à inflamação e, eventualmente, à
morte delas. “Nesse estudo, demonstramos que uma vacina com um vírus
enfraquecido, que não é mais capaz de causar doenças em humanos, pode infectar
e matar seletivamente células-tronco de glioblastoma humano. O tratamento com a
vacina contra zika pode diminuir o crescimento do tumor e prolongar a sobrevida
do camundongo”, ressaltou Pei-Yong Shi.
Ação combinada
A equipe acredita que a vacina poderá ser usada com as
abordagens já adotadas. “Os resultados sugerem que o vírus zika modificado pode
ter o potencial de ser usado em uma combinação com a atual terapia contra o
glioblastoma, incluindo cirurgia, radiação, quimioterapia e imunoterapia”,
completa o líder do estudo.
Rodrigo Nery, neuro-oncologista do Hospital Santa Lúcia, em
Brasília, destaca que o estudo internacional utiliza uma linha de pesquisa que
tem sido bastante explorada na área oncológica. “Temos pesquisadores
brasileiros que estudam o uso do zika no tratamento do meduloblastoma em
crianças e outros estudos voltados para tumores também cerebrais que utilizam o
vírus da herpes e o rinovírus”, detalha.
Apesar de promissora, a abordagem, segundo Rodrigo Nery,
precisa ser aprofundada, já que o estudo liderado por Pei-Yong Shi é muito
inicial. “São resultados interessantes, mas que precisam ser mais explorados,
algo que demorará muitos anos ainda. É importante deixar isso claro para não dar falsas expectativas aos
pacientes”, frisa.
O líder do estudo adianta quais serão as futuras etapas da
pesquisa. “Nos próximos anos, ainda precisaremos entender por que o vírus zika
tem essa capacidade de matar o câncer. Além disso, pretendemos melhorar a sua
potência e segurança para o desenvolvimento clínico”, diz. “Como virologista,
vejo que devemos aproveitar o ‘lado ruim’ dos vírus. Eles têm um papel a
desempenhar no tratamento do câncer”, complementa.
Em se tratando de um carcinoma tão agressivo, o esforço dos
cientistas é muito bem-vindo, ressalta Rodrigo Nery. “O glioblastoma é um tumor
que ocorre em pessoas mais velhas. No Brasil, a estimativa é de 12 mil casos em
2018 e 2019. Ele não tem cura, geralmente um paciente quando diagnosticado tem
apenas 14 meses de vida. Por isso, tratamentos que ajudem a prolongar a vida
são importantes.” // TOMADO DE CORREIO BRAZILIENSE
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