Um ano depois do surgimento do Sars-CoV-2, pesquisa norueguesa elenca 16 tipos de comportamentos que emergiram na sociedade ao longo da crise sanitária. Identificação das personalidades pode ajudar a definir políticas públicas que combatam ações negativas
PO
Paloma Oliveto
(crédito: Valdo Virgo)
Alguns negaram a gravidade. Outros foram à janela, aplaudir
os profissionais de saúde. Muitos se ofereceram para fazer compras para os mais
velhos. E teve quem se aproveitasse da situação, vendendo produtos, como kits
de vitaminas, que supostamente protegeriam contra o inimigo comum da sociedade
atualmente: o Sars-CoV-2. Especialmente no início da pandemia, uma
série de comportamentos pareceram emergir. Um ano depois, uma pesquisa da
Universidade de Bergen, na Noruega, identificou e listou 16 personalidades
associadas, segundo a autora, diretamente à crise da covid-19.
Mimi E. Lam, que publicou o artigo na revista Humanities and
Social Sciences Communications, do grupo Nature, afirma que a identificação das
personalidades emergentes é necessária para nortear políticas públicas capazes
de intervir sobre os efeitos de comportamentos prejudiciais, como o dos
negacionistas. Ou dos que passaram a culpar os chineses pela pandemia. De
acordo com a pesquisadora, sob a justificativa da covid-19, traços latentes,
como xenofobia, racismo e intolerância, foram colocados para fora.
“Em sociedades pluralistas, as respostas comportamentais
individuais variam de acordo com os valores pessoais, contextos situacionais e
identidades dos grupos, podendo afetar o cumprimento das políticas e a
transmissão viral”, diz. Uma das personalidades listadas por ela, por exemplo,
é a dos “invencíveis”, que, por se acharem imunes a qualquer problema,
desobedecem as normas de distanciamento e fazem festas, se aglomeram em bares,
praias…
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Ainda sobre os negacionistas, especialmente aqueles com
poder de influenciar milhares de pessoas, acabam incentivando que seus
apoiadores ignorem as medidas capazes de ajudar a frear a disseminação viral.
“Em abril de 2020, líderes mundiais clamaram para a
população a adotar medidas de distanciamento, de uso de máscaras e de
isolamento. Em contraste, líderes populistas resistiram a essas medidas, como o
presidente Jair Bolsonaro, que nega a covid-19 como uma ‘histeria’ da mídia e
exorta os brasileiros a voltarem ao trabalho e às escolas contra as restrições
impostas pelo Estado”, afirma Lam.
Fusão
A psicóloga e pesquisadora ressalta que as identidades
virais, como ela as chama, não surgem do nada, mas apenas foram reforçadas pela
pandemia. Lam destaca que os comportamentos emergentes dos indivíduos se
fundiram aos de grupos sociais e políticos.
Ela exemplifica com os Estados Unidos, onde governadores
democratas insistiram nas medidas de isolamento, enquanto, no geral, os
republicanos fizeram o oposto. “Os comportamentos de distanciamento social
estão refletindo identidades virais politizadas e polarizadas.”
Por outro lado, a pesquisadora também identificou
comportamentos positivos que se destacaram durante a pandemia, como o dos
altruístas, que se prontificaram a ajudar os mais fragilizados, se oferecendo
para fazer compras para pessoas do grupo de risco na fase mais estrita de
distanciamento social. Outra personalidade destacada no estudo é a dos
realistas, que mudaram de hábitos para se adaptar à nova realidade.
Foi o caso da psicóloga e perita Heloí Fernandes, 27 anos.
“Desde o início da pandemia eu tenho evitado sair ao máximo possível. Tenho ido
mais ao mercado e frequentado lugares ao ar livre, como parques e restaurantes
abertos. Mesmo sendo mais complicado, adaptei meu trabalho de perícia para a
pandemia também. Tenho evitado fazer atendimentos presenciais, quando é
possível realizar parte do atendimento via videoconferência”, conta.
Apesar de reconhecer a dificuldade de se acostumar no início
— especialmente por se manter afastada da sobrinha então recém-nascida —, Heloí
procurou tirar o melhor proveito possível da situação. “Voltei a fazer coisas
que não fazia há tempos como pintura e aprendi a bordar. Tento ocupar meu tempo
pra não ficar ocioso porque um dos meus grandes problemas nesse isolamento é a
sensação de que o tempo não passa”, diz.
Três perguntas
Verônica Souza, psicóloga pós-graduada em psicologia analítica junguiana e em avaliação psicológica
É normal que em situações extremas determinadas
personalidades se evidenciem mais?
Percebo que as personalidades que mais se evidenciam são as que estão em
sintonia com o espírito da época. Então, é normal, sim, algumas personalidades
se evidenciarem em alguns períodos ou situações. As que mais se evidenciam são
as que se encaixam nas projeções de desejos e vergonhas que todos nós
carregamos e, em situações extremas, se corporificam em atitudes. O destaque de
alguns tipos de personalidades são respostas aos anseios de um momento.
Geralmente, traços dessas personalidades podem ser
identificados nas pessoas antes de situações como a pandemia atual? Elas já dão
pistas de como podem se comportar nesse tipo de situação extrema?
Sim, quando nos dedicamos a estudar os traços de personalidade começamos a
perceber que eles estão diluídos nas mais diversas áreas de nossas vidas e
estão em construção e desenvolvimento desde a infância. Mas precisamos ter
atenção para o perigo do determinismo de reduzir a experiência da vida, que é
ampla e complexa, a uma rigidez de ser apenas um tipo de personalidade. A
experiência da vida é sempre desafiadora e o ser humano é capaz de aprender
novos conceitos e ampliar sua atuação. Por exemplo, um soldado pode adaptar
seus traços para os esportes quando não estiver em campo de guerra. Ter um
traço de personalidade não é uma sentença, a capacidade humana de ampliar e
evoluir com as experiências é inesgotável. Assim, evitamos extremismos de
estereótipos, preconceitos e discriminações. Assim, o soldado é livre a
experimentar e até se dar bem em outros papéis.
Do ponto de vista das políticas de saúde pública, como a
identificação desses comportamentos pode ser útil?
É muito importante que as políticas de saúde pública saibam identificar e
atualizar seus conhecimentos sobre os tipos de personalidades. O entendimento
do público-alvo é importante para desenvolver estratégias eficientes e,
principalmente, no processo de comunicação de tais estratégias. Um exemplo de
aprendizado e evolução que as políticas de saúde no Brasil precisaram
desenvolver foi o processo de enfrentamento e combate à aids. O slogan “use
camisinha” foi usado por muito tempo, até que se desenvolveram estratégias de
ação e comunicação para os diversos públicos que a doença alcançava.
Homossexuais, heterossexuais, jovens, donas de casa casadas, meia idade e até
para o público depois dos 50 anos. Foi necessário ampliar as estratégias de
diálogo, tornar o discurso mais íntimo para engajar o público-alvo.
Um medo altruísta
Um estudo da Universidade da Pensilvânia e do Hospital
Pediátrico da Filadélfia identificou um padrão altruísta no temor que as
pessoas têm da covid-19. Segundo a pesquisa, realizada com 3.042 participantes
dos Estados Unidos e de Israel, com idades entre 18 e 79 anos, descobriu que o
que mais preocupava a maioria não era adoecer, mas que alguém da família fosse
infectado, e também a possibilidade de transmitir o vírus sem saber.
Em abril, logo depois que as medidas de isolamento foram
adotadas na maior parte do mundo, os pesquisadores lançaram uma pesquisa
on-line no atcovid19resilience.org para estudar o estresse e a resiliência
durante a pandemia. A pesquisa mediu seis fontes potenciais de estresse:
contrair o vírus; morrer da covid-19; estar no momento contaminado; ter um
membro da família infectado; infectar outras pessoas sem saber; e enfrentar
dificuldades financeiras significativas.
Entre os que participaram, o medo de os familiares
contraírem o vírus (48,5%) e de eles próprios infectarem outras pessoas sem
saber (36%) superou o sofrimento associado à própria contaminação pelo
Sars-CoV-2 (19,9%). Os entrevistados com pontuações de resiliência mais altas
apresentaram preocupações mais baixas relacionadas à covid-19, assim como uma
taxa reduzida de ansiedade (65%) e depressão (69%).
“Com base em nosso estudo, parece que as pessoas estão mais
preocupadas com os outros do que com elas mesmas ao relatar suas preocupações,
mas a resiliência ajuda a reduzir o estresse, bem como a ansiedade e a
depressão”, diz Raquel Gur, MD, PhD, professora de Psiquiatria da Universidade
da Pensilvânia.
Tomado de correio brasiliense
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