Casamento infantil atinge milhares de meninos e meninas no Brasil
Projeto de lei em tramitação no Congresso acaba com brechas
na legislação e proíbe a união de
pessoas com menos de 18 anos de idade
A mistura de fatores como a religião, a cultura e as
estruturas sociais e patriarcais está na raiz de um fenômeno tristemente comum
no Brasil: o casamento infantil — aquele em que um dos cônjuges tem menos de 16
anos. Os números são alarmantes. O país tem o maior número de casos da América
Latina e o quarto no mundo. Um projeto de lei que tramita no Congresso pretende
proibir totalmente o casamento de crianças e adolescentes, acabando com as
brechas existentes na legislação atualmente em vigor.
Estudo pioneiro feito pela Plan International Brasil e o
Instituto Promundo analisa o contexto do casamento infantil nos dois estados
brasileiros com maiores índices: Pará e Maranhão. Neles, o número de meninas
casadas é muito superior ao de meninos. Foram 22.849 meninos de 10 a 14 anos
casados, contra 65.709 meninas da mesma idade. Na faixa de 15 a 17 anos foram
78.997 meninos e 488.381 meninas. O resultado dessas uniões: um quinto dos 3
milhões de partos realizados pelo Sistema Único de Saúde são de mães menores de
idade.
Na semana passada, um projeto de lei que pode mudar
este cenário chegou ao Senado. O texto passará pela Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ), tendo a senadora Marta Suplicy (MDB-SP) como
relatora. O projeto da deputada Laura Carneiro (DEM-RJ) suprime trechos da
redação da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002, que determinam as exceções legais
ao casamento infantil. O texto passará pela CCJ e pelo plenário e, se não for
modificado, vai para sanção do presidente da República.
Atualmente, meninas podem se casar a partir dos 16 anos, com
o consentimento dos pais ou de um juiz. Em caso de gravidez, não há limite
mínimo de idade. Para especialistas, a norma é permissiva e acaba possibilitando
e, em certos casos, até favorecendo o casamento infantil. Segundo estudo da
organização não governamental Promundo, três milhões de mulheres afirmaram ter
se casado antes dos 18 anos. O estudo indica que 877 mil mulheres brasileiras
se casaram com até 15 anos e que existem cerca de 88 mil meninos e meninas de
10 a 14 anos em uniões consensuais, civis ou religiosas, no Brasil.
A mudança na legislação é uma das ferramentas para o país
atingir um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, do Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef), de reduzir essa prática até 2030. Pela
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o casamento é permitido
somente a partir dos 18 anos de idade na maioria dos países. De 2015 até o ano
passado, países como Chade, Malawi, Zimbábue, Costa Rica, Equador e Guatemala
elevaram a idade mínima de casamento para 18 anos. Além disso, aboliram as
exceções que permitiam casamentos infantis.
Autora do projeto, a deputada federal Laura Carneiro
acredita que a alteração da lei será o primeiro passo para uma ampla mudança
cultural. “Estamos no século 21 e falhamos na preservação e na continuidade de
políticas públicas de educação e assistência. Como podemos ter um código em que
há brechas para a menina se casar em vez de estar na sala de aula? Essa é uma
estatística ruim que deve começar a mudar”, pondera.
A senadora Marta Suplicy garante que apresentará seu
relatório com a maior brevidade possível. “O projeto é singelo, mas de um
significado imenso para a proteção de nossas crianças, em especial as meninas.
Com o casamento infantil, a menina perde a capacidade de tomar decisões por si
mesma; muitas deixam a escola, o que se refletirá na sua capacidade de
conseguir emprego quando adulta. Sem contar outras situações graves, como a
gravidez prematura, os abusos e a violência”, explica a senadora.
Histórias perpetuadas
O Banco Mundial tem dados ainda mais alarmantes. O estudo
Fechando a Brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher contra a Violência,
destaca que, de toda a população feminina brasileira, 36% se casaram antes dos
18 anos. Segundo o trabalho, meninas que se casam durante a infância sofrem com
evasão escolar, gravidez precoce e abusos e violência doméstica.
Uma tabeliã do interior do Maranhão, que pediu para não ser
identificada, relatou ao Correio uma união ocorrida na última semana. O jovem,
de 16 anos, se casou com uma menina de 14 anos (completados no mês passado). O
matrimônio foi um acordo entre as famílias. Ela está grávida. “A menina já
largou a escola. Ele começou a trabalhar para sustentar a ‘nova’ família. Os
pais acharam natural. Viveram a mesma história no passado. Afinal, a mãe da
menina vai ser avó aos 31 anos”, detalha.
A tabeliã diz que a situação brasileira é preocupante. “Os
números não crescem, mas, ao mesmo tempo, não regridem. Não vejo nenhum tipo de
combate a esse mal. Espero que a mudança na lei sirva, pelo menos, para colocar
o assunto em debate. O Brasil precisa assumir que convive pacificamente com
essa realidade e que isso não é bom. Relatei um caso ao jornal, mas esbarro com
essas histórias diariamente”, conclui.
Poucas são as políticas públicas para que esse cenário seja
modificado. No Pará, por exemplo, o programa Pro Paz oferece acolhimento
psicossocial a vítimas de exploração ou violência sexual. “A implantação do
projeto vem ajudando a reduzir a revitimização, a superação dos traumas das
vítimas e seus familiares, além de incentivar as denúncias. Assim, o Pro Paz
Integrado atua na prevenção do abuso e exploração sexual e todas as formas de
violência intrafamiliar”, explica o governo paraense, em nota. O governo
maranhense não respondeu aos questionamentos do Correio. // TOMADO DE CORREIO
BRAZILIENSE
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