Empurrão genético
tornou o homem exímio corredor de longas distâncias
A perda funcional de um gene pode ter transformado o homem
em um dos melhores corredores de longa distância do reino animal, segundo
pesquisadores americanos. Mudança se deu quando nossos ancestrais mudaram das
florestas para as savanas
Alterações biomecânicas e na fisiologia do esqueleto
iniciadas há cerca de 2 milhões de anos deram mais resistência à espécie humana
moderna
(foto: Jean-Philippe Ksiazek/AFP - 1/12/17)
De dois a três milhões de anos atrás, a perda funcional de
um único gene desencadeou uma série de mudanças significativas, em um processo
que daria origem à espécie humana moderna. Tudo foi se alterando: desde as
taxas de fertilidade até o aumento do risco de câncer devido à ingestão de
carne vermelha. Em artigo publicado na revista Proceedings of the Royal Society
B, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados
Unidos, descreveram o que ocorreu com ratos dos quais foi retirado esse gene, o
CMAH. Os dados sugerem que a proteína perdida também pode ter contribuído para
o fato de o homem ser um dos melhores corredores de longa distância do reino
animal.
Aproximadamente na mesma época em que a mutação da CMAH se
instalou, os ancestrais humanos estavam em transição de habitantes da floresta
para a vida nas áridas savanas da África. Eles já eram bípedes, os corpos e as
habilidades desses primeiros hominídeos evoluíam dramaticamente e, em particular,
ocorriam grandes mudanças na biomecânica e na fisiologia do esqueleto, que
resultaram em pernas longas e elásticas, pés grandes, músculos glúteos
poderosos e um sistema expansivo de glândulas sudoríparas. Graças a isso, o
calor se dissipava com muito mais eficácia que em outros mamíferos maiores.
Essas, dizem os cientistas, ajudaram no surgimento da
capacidade humana de percorrer longas distâncias de forma incansável,
permitindo que os ancestrais caçassem no calor do dia, quando outros carnívoros
descansavam, e perseguissem seu ponto de exaustão, uma técnica chamada
persistência. “Descobrimos essa primeira diferença genética entre humanos e
nossos parentes evolutivos mais próximos, os chimpanzés, há mais de 20 anos”, conta
o autor sênior do estudo, Ajit Varki, professor emérito de medicina e medicina
celular e molecular e codiretor do Centro de Pesquisa Acadêmica e Treinamento
em Antropogenia da Universidade da Califórnia em San Diego.
Dado o tempo aproximado da mutação e seu impacto documentado
na fertilidade em um modelo de camundongo com a mesma variante, Varki e Pascal
Gagneux, professor de antropologia e patologia, começaram a investigar como a
diferença genética poderia ter contribuído para a origem do Homo, o gênero que
inclui o moderno Homo sapiens e espécies extintas, como Homo habilis e Homo
erectus. “Como os camundongos também eram mais propensos à distrofia muscular,
tive um pressentimento de que havia uma conexão com o aumento da corrida de
longa distância e da resistência do Homo”, afirma Varki. “Mas eu não sabia nada
sobre o assunto e não conseguia convencer ninguém no meu laboratório para
organizar esse experimento de longo prazo”, continua.
Até que um estudante de pós-graduação chamado Jon Okerblom
assumiu a tarefa, construindo rodas de corrida de ratos e emprestando uma
esteira própria para roedores. “Nós avaliamos a capacidade de exercício dos
camundongos sem o gene CMAH e observamos um aumento no desempenho durante
testes em esteira e depois de 15 dias de corrida”, relata Okerblom, o primeiro
autor do estudo. Os pesquisadores, então, recorreram a Ellen Breen,
pesquisadora na Divisão de Fisiologia do Departamento de Medicina da Faculdade
de Medicina da universidade, que acrescentou observações de que os ratos
apresentavam maior resistência à fadiga, aumento da respiração mitocondrial e
músculos com mais capilares para aumentar o suprimento de sangue e oxigênio.
Em conjunto, Varki afirma que os dados sugerem que a perda
de CMAH contribuiu para melhorar a capacidade musculoesquelética para
utilização de oxigênio. “Se as descobertas se traduzirem nos humanos, essa
mutação pode ter fornecido aos primeiros hominídeos uma vantagem seletiva
quando desceram das árvores para se tornar caçadores-coletores em áreas abertas,
como as savanas.”
Imunidade elevada
Quando o gene CMAH sofreu mutação no gênero Homo,
provavelmente em resposta a pressões evolutivas causadas por um antigo
patógeno, isso alterou a forma como os hominídeos subsequentes e os humanos
modernos usaram ácidos siálicos — uma família de moléculas de açúcar que
reveste as superfícies de todas as células animais, que servem como pontos de
contato vitais para interação com outras células e com o ambiente circundante.
A mutação causa a perda do chamado ácido N-glicolilneuramínico (Neu5Gc) e o
acúmulo de seu precursor, o ácido N-acetilneuramínico ou Neu5Ac, que se difere
por um único átomo de oxigênio.
Essa diferença aparentemente pequena afeta quase todos os
tipos de células do corpo humano e provou ser vantajosa. Varki associa a
deleção do gene CMAH e dos ácidos siálicos não apenas à melhoria da capacidade
de corrida de longa distância, mas ao aumento da imunidade inata nos primeiros
hominídeos. Os ácidos siálicos também podem ser um biomarcador para o risco de
câncer.
Por outro lado, os pesquisadores também relataram que certos
ácidos siálicos estão associados ao aumento do risco de diabetes tipo 2,
podendo contribuir para chance maior de se ter câncer em decorrência do consumo
de carne vermelha, além de desencadear inflamações. “É uma faca de dois gumes”,
diz Varki. “A perda de único gene e uma pequena alteração molecular decorrente
parecem ter alterado profundamente a biologia humana e as habilidades que
remontam às nossas origens.” // TOMADO DE CORREIO BRAZILIENSE
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