viernes, 23 de septiembre de 2016

"BRASIL TEM DE SE RECONHECER COMO PAÍS RACISTA", DIZ PROFESSOR DE DIREITO

Coordenador do curso na Unisinos fala sobre marcas da intolerância na história do país e da
importância de instrumentos legais para combatê-la
Na esteira da Olimpíada do Rio de Janeiro, Rumo entrevistou professores da Unisinos para uma reportagem especial sobre intolerância e alteridade, veiculada no caderno de setembro. A celebração da diversidade na cerimônia de abertura e episódios marcantes -- como o ouro conquistado pela judoca Rafaela Silva, que nas olimpíadas anteriores fora alvo de xingamentos racistas -- serviram de ponto de partida para a discussão sobre a extensão do preconceito, do racismo e das desigualdades raciais e de gênero no Brasil.
Para Guilherme de Azevedo, coordenador da graduação em Direito da Unisinos, as olimpíadas são um ponto de partida interessante em que contradições se revelam.
-- Como em qualquer grande evento de concentração de massa, alguns elementos de um certo inconsciente coletivo acabam aflorando. Sempre que há frustração ou cobrança mais apaixonada do torcedor, se vocalizam duas ideias-chave: ressaltar o elemento racial e fazer associação à ideia de homossexualidade, como ferramenta de agressão, humilhação -- analisa Azevedo.
Na entrevista a seguir, o pesquisador de Sociologia do Direito -- que produziu tese de doutorado sobre a função do Direito na inclusão dos negros -- responde a questões sobre o racismo institucional no Brasil e a importância da legislação sobre o tema para garantir representatividade aos afrodescendentes, do sistema educacional ao congresso.
As Olimpíadas mostraram esse país que celebra a diversidade ao mesmo tempo em que tem no esporte um dos poucos espaços privilegiados em que o negro é representado. Ainda assim, neste mesmo espaço, o negro ainda está sujeito ao xingamento racista.
Antes de discutir ferramentas jurídicas de combate e de punição, deve estar claro que o Brasil ainda não reconheceu a marca de país racista. É o que torna mais difícil toda política pública mais avançada de combate a discriminação e de tolerância. Isso fica demonstrado nos próprios jogos. A gente não tem, via de regra, um espelho proporcional da população brasileira refletida nos meios de comunicação e nos meios representativos. O Brasil ainda não enxergou que é um país de negros, não é um país de brancos. Temos população majoritariamente composta por negros e nos pensamos, nos imaginamos enquanto europeus -- tanto que pensamos a questão racial como questão de uma minoria, que, pelo passado escravista, teve mais dificuldade de se desenvolver economicamente. O país não reconhece o trauma da escravidão, o trauma do racismo.
Nesse contexto, as Olimpíadas têm papel importante de devolver o protagonismo para o negro. O esporte tem esse mérito e isso não deve ser perdido. Mas isso fica restrito ao terreno do esporte. O negro não quer discutir seu lugar só na música e no esporte.
O coordenador da Educação Física da Unisinos e ex-atleta olímpico Jorge Luiz Teixeira da Silva comentou sobre isso: onde estão os negros treinadores, os negros na direção do Comitê Olímpico?
Exato. O racismo está presente quando a gente começa a identificar indicadores sociais, e perceber que é extremamente raro comparar escolaridade da população branca com a negra. Começa-se a perceber que a representação política do negro é completamente insuficiente, com mais de 50% de negros na população, praticamente não tem negros na polícia. Este é o espelho torcido. Quem assiste os jogos nos estádios e arenas, quem está na abertura, é majoritariamente a população branca. Aí se percebe o atravessamento muito forte das desigualdades racial e econômica. Vários filhos de colegas meus perguntaram por que havia tantos atletas negros brasileiros nos jogos. Quer dizer: as crianças não estão acostumadas a ver negros, não tem essa representação, não estão acostumadas a ver negros, nem na realidade, nem na televisão, na novela, no jornalismo.
Quer dizer: a representatividade não é só importante para os negros, para afirmar sua identidade e empoderá-los, mas também para os brancos.
Exato. Quando ela vai ver a representação de jovens e adolescentes negros, normalmente serão pessoas ligadas ao trabalho braçal, um porteiro, um síndico, ou uma pessoa ligada ao esporte. Ela consegue enxergar o negro na favela, associa o fenótipo negro à miséria e a pobreza. Os núcleos pobres das novelas são sempre compostos por negros -- e é uma representação, neste ponto, correta. Só que gera esse espelho torcido. Se pegar, por exemplo, o debate sobre cotas nos EUA: o argumento que sustentou por muito tempo as cotas lá não é só da inclusão da população negra em si, mas de que a pluralidade é um valor em si. Em vários estados americanos que adotaram as cotas, tinham como argumento mais forte garantir que o ambiente universitário fosse de pluralidade.
O senhor fala nas Olimpíadas como um "espelho torto", por sugerirem que o negro tem o devido espaço na sociedade. A legislação é uma ferramenta fundamental para corrigir esse espelho?
O debate da legislação é importante. A lei 10.639/2003 (que obrigou a inserção de conteúdos da cultura e história afrodescendente nos currículos escolares), que é uma luta histórica do movimento negro, ainda é muito defasada em termos de fiscalização, embora o Tribunal de Contas no RS tenha feito trabalho muito interessante monitorando a aplicação da lei, em nível nacional a fiscalização é precária. Está justamente tentando corrigir a representatividade dos negros dentro da escola. Porque todo representante histórico do país é tratado como branco. O próprio Machado de Assis aparece nos livros didáticos como um senhor branco! De onde vem o equívoco? Desse embranquecimento proposital que o Brasil insiste em fazer para manifestar processos de racismo.
Os parâmetros das pessoas para avaliarem seu racismo são parâmetros bárbaros: se não considero abertamente o negro inferior, não sou racista.
Exato. O Brasil é um país racista sem racistas, isso sempre é dito por quem pesquisa o assunto. A Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga, tem um relato interessante de uma pesquisa feita em São Paulo, quando completamos 100 anos da abolição. Foi feito um levantamento com duas perguntas: se pessoas se tinham preconceito de raça -- 99% das pessoas disseram que não. Se a pessoa tinha conhecidos racistas -- 97% das pessoas dizem que sim. Temos um problema. Se o racismo não vem da população, vem de onde? Eu enxergo duas explicações. De certa forma o brasileiro colou na ideia de que somos o país da miscigenação, do encontro de raças, e àquele modelo de democracia racial muito associado ao (cientista social, autor de Casa Grande & Senzala) Gilberto Freyre. Colou porque a gente enxerga o negro em alguns espaços de representação estética do país, no carnaval, nossa manifestação cultural máxima, na música e no esporte. Essa imagem dá a sensação de que outros espaços de poder no Brasil representariam o encontro desse imaginário, o que a gente sabe que é absolutamente falso. Agora que começamos a conseguir incluir um pouco da população jovem negra nas universidades, com muito sacrifício, com muita dificuldade. O outro ponto importante: não tivemos no Brasil legislação explícita para autorizar práticas de discriminação racial como ocorreram nos Estados Unidos. É delicado, porque dá sensação de que, porque não estava na lei, não era feito pelas organizações, pelos clubes. Sou de São Leopoldo. Até os anos 1950, tinha um clube com cavalete no cantinho da área social que dizia "Proibida a entrada de pessoas de cor". Em Pelotas, havia clubes para negros e clubes para brancos. Isso tudo independentemente de o estado ter feito algo com o Direito. Há uma lei dos anos 1950 que penaliza como contravenção a prática de atos racistas, como proibir negros de adentrar um determinado estabelecimento, e isso foi feito após um constrangimento porque uma bailarina americana que não pode se hospedar em um hotel. O país sofreu um constrangimento internacional, e fez uma lei que continuou "não pegando". Só com a Constituição de 1988 e com medidas afirmativas é que começamos a conseguir colocar o negro no Direito.
Mas é uma exceção. São cem anos em que praticamente não há legislação que trate do problema da desigualdade racial, sendo que é o elemento mais marcante da construção do país. Nenhuma marca é mais significativa para explicar por que o Brasil é do jeito que é que não seja a exploração da mão de obra negra com a escravidão. Tudo que foi feito no Brasil de estrutura e construção no século 19, foi com mão de obra negra no século 19.
Se não se recupera a identidade passada nem se compreende o elemento presente, vai-se ter leitura de que não houve racismo no Brasil. Há comparações entre o negro e o imigrante italiano ou alemão que são inverídicas: o imigrante teve acesso a terra, nunca foi escravizado, não tem o estigma de cidadão de segunda classe. E boa parte das dívidas que europeus contraíram foram depois perdoadas pelo estado brasileiro. Negros nunca dispuseram de políticas públicas, pelo contrário: após a abolição foram completamente abandonados pelo estado. Daí toda a formação das favelas.
De onde vem a hierarquia que a gente construiu? Havia brancos pobres. O Brasil era um país de analfabetos no início do século 20, éramos democráticos nos processos de exclusão. Mas além de pobre, negro carregava a condição de liberto ou de ingênuo. Esse elemento já potencializava desigualdade maior em relação ao branco pobre. Não é necessário legislação no século 20 para pagar menos pela mão de obra de um negro. Você sabe que ele vai ter dificuldade e que dará graças a Deus por ter trabalho. Não precisa do Direito: essa racismo vem do hábito, do costume, da representação política e simbólica do fim do século 19, de quem era o negro. E isso se perpetuou no século 20. Não era necessário legitimar racismo indireto por leis.
A sensação é de que a gente avança muito lentamente. Por que as pessoas se sentem autorizadas a ofender as pessoas por sua cor?
Existe tentativa de atenuar ofensas racistas em estádios pessoal bota na conta do folclore, do ambiente descontraído, que é "diferente" ofender a pessoa nessa condição de estádio de futebol e situação festiva seria diferente de ato discriminatório em outro ambiente. Esse argumento não se sustenta, nem do ponto de vista jurídico, nem sociológico. Primeiro porque os estádios estão na mesma sociedade, não são imunes à legislação. O que ocorre é um fenômeno semelhante ao da rede social: há percepção de que se perde a identidade social. Por isso, o clube tem de ser punido. Ele é responsável, no sentido de mobilizar sua torcida de forma pedagógica. Não é um sujeito passivo que tem de torcer para torcedores não serem racistas, intolerantes. Ele tem de agir de forma a modificar essa cultura, porque ele lucra com aquela mobilização. Se tem vantagem com aquilo, tem de ter ônus: agir de forma proativa em relação a sua torcida.
Via de regra, temos melhorado? O que parece se insinuar para o futuro?
Tem de se comemorar o avanço legislativo, inegável, da Constituição de 1988 para cá, mas especialmente a partir da Convenção de Durban (encontro para enfrentamento global da desigualdade racial promovido pela ONU), quando passa a haver proliferação de legislação: Estatuto da Igualdade Racial, que precisa ser melhor regulamentado, com dispositivos que inclusive preveem repasse de impostos para financiar políticas públicas de igualdade racial. Temos o crime de racismo e de injúria racial. De forma geral, temos legislação pro campo educacional, guarda-chuva geral de promoção da igualdade e legislação penal para criminalizar condutas racistas. O que falta? O que a gente chama de racismo institucional. Essa legislação se torna quase inócua, muitas vezes, porque atores jurídicos e políticos, não enxergando racismo como algo relevante, pensam como assunto menor. Com reportagens que estão sendo feitas e redes sociais dando visibilidade, temos ganhado um aliado e as denúncias têm aumentado. Especialmente quando envolvem famosos, temos algum tipo de investigação mais intensa. Mas não pensa que quem ofende a Taís Araújo vai ter tratamento jurídico igual a quem ofende a Dona Maria José na padaria. Para o negro fora na situação de artista, o negro no anonimato, ainda é muito difícil levar adiante uma situação que comprove ser vítima de racismo. Associam a vitimismo: "já veio o cara inventar que foi racismo porque não conseguiu emprego". Ainda botamos a culpa na população negra. Uma coisa muito importante em termos de futuro é a pressão internacional. A ONU tem dado atenção a isso, toda legislação brasileira no século 21 é resultado da Convenção de Durban. No plano do Direito Internacional, estamos criando cultura de monitoramento nos estados da violência e da discriminação contra a mulher, o s negros, os indígenas, as pessoas com deficiência, o idoso.

TOMADO DE ZERO HORA DE RGS BR 

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