Consórcio de pesquisadores reconstitui a história dos cães
nativos da América e descobre que eles chegaram ao continente acompanhando os primeiros
humanos que se deslocaram pelo Estreito de Bering. Grupo partiu da Sibéria há
cerca de 9 mil anos
PO Paloma Oliveto
Estudo da domesticação de cães também ajuda a identificar
detalhes das correntes migratórias humanas(foto: AFP PHOTO / Inti OCON )
Estudo da domesticação de cães também ajuda a identificar
detalhes das correntes migratórias humanas
(foto: AFP PHOTO / Inti OCON )
Ele não é só o melhor, mas o primeiro amigo do homem
pertencente a uma espécie distinta. Companheiro fiel desde a domesticação, o
cachorro tem seguido o Homo sapiens em sua jornada ao redor do globo. E foi
assim que chegou às Américas no fim do gelo, atravessando o Estreito de Bering
desde a Sibéria, por volta de 9 mil anos atrás. Do norte do Novo Mundo,
espalhou-se pelo continente, alcançando todos os cantos, inclusive o Brasil.
Porém, com a colonização europeia, a partir do século 15, os cães nativos
desapareceram, deixando poucas marcas genéticas nas populações atuais. A única,
aliás, não é nada saudosa: o TVT, um câncer venéreo que acabou se espalhando
por todo o mundo.
Esse é o resumo da história dos cães nas Américas,
reconstituída por um consórcio de pesquisadores liderados pela Universidade de
Cambridge, na Inglaterra. O resultado do estudo foi publicado na revista
Science e tem como base o sequenciamento genético de 71 fósseis de cães
americanos e siberianos, além do DNA mitocondrial (da linhagem da mãe) de 145
espécimes modernos e antigos, contidos em um banco de dados mundial.
FOTO Fóssil de animal
enterrado nos EUA entre 660 e 1350 anos atrás: amizade antiga(foto: Illinois
State Archaeological Survey/Divulgação )
Fóssil de animal enterrado nos EUA entre 660 e 1350 anos
atrás: amizade antiga
(foto: Illinois State Archaeological Survey/Divulgação )
De acordo com o estudo, os cães nativo americanos não eram
parentes dos lobos do norte do continente, como muitos trabalhos defendem, mas
tinham ascendência direta dos cachorros siberianos. O fato evidencia o
movimento migratório da espécie, acompanhando as ondas de deslocamento humanas
para essa parte o planeta. “Nosso estudo confirma que os cães americanos
originaram na Sibéria e atravessaram o Estreito de Bering durante as primeiras
ondas de migrações do homem para o continente”, diz Angela Perri, arqueóloga da
Universidade de Durham e coprimeira autora do artigo.
Isso ficou evidente com a árvore filogenética construída
pelos cientistas a partir dos genomas dos animais. Ela mostrou que os cães americanos
que habitavam o continente antes do contato com o colonizador europeu
descendiam de populações caninas da Ilha Zhokhov, da Sibéria Oriental. Além
disso, análises da taxa de mutação de moléculas — uma técnica utilizada para
deduzir o tempo de divergência entre espécies — sugerem que todos nativos
compartilhavam um ancestral que viveu entre 16 mil e 13 mil anos atrás, o qual,
por sua vez, também se separou da linhagem dos cães de Zhokhov mil anos antes.
Segundo os pesquisadores, esses períodos coincidem com as primeiras migrações
para as Américas.
Impacto da
colonização
Esses cães conviveram com populações humanas de nativos
americanos durante milênios. Então, os europeus chegaram. Primeiro os
espanhóis, depois os portugueses. Rapidamente, os descendentes dos cachorros
siberianos desapareceram, deixando um único vestígio, um câncer venéreo
transmissível. “Algo muito catastrófico deve ter acontecido, e é muito provável
que tenha associação com a colonização. O desaparecimento quase total
provavelmente é uma combinação de efeitos como doenças, perseguição cultural e
mudanças biológicas”, explica Laurent Frantz, pesquisador da Rede de Pesquisas
de Paleogenômica e Bioarqueologia de Oxford (Paleo-Barn). “Porém, ainda não
temos evidências para explicar o desaparecimento súbito dos cães”, admite. Em
nota, o diretor do Paleo-Barn fez um paralelo com o que ocorreu com os nativos
americanos, dizimados pelo homem branco das Américas. “Esse estudo demonstra
que a história dos homens refletiu-se na dos nossos animais domésticos.
Europeus e americanos eram geneticamente distintos e, assim, eram seus cães. E,
assim como os indígenas foram substituídos pelos colonizadores europeus, o
mesmo foi verdade sobre seus cachorros.”
Apesar de dizimados, os cães nativos americanos deixaram a
marca do tumor venéreo TVT nos animais europeus. Segundo o artigo, esse câncer
teve origem nas células de um único cachorro, chamado “cão fundador do TVT”,
que viveu há milhares de anos. Esse espécime era próximo geneticamente dos que
viviam nas Américas antes da colonização. Provavelmente, devido a cruzamentos,
ele foi transmitido aos cachorros da Europa e, hoje, é o último vestígio da
população que se aventurou pelo Estreito de Bering mais de 10 milênios atrás
para fazer o que sempre fez: ficar ao lado do melhor amigo.
Palavra de
especialista Extinção surpreende
“O artigo traz grandes contribuições para o estudo das
relações entre cães e pessoas. Realizado por uma equipe forte de pesquisadores
de diversas instituições, o estudo aponta novos caminhos para o entendimento da
evolução dos cães, especialmente dos que hoje habitam as Américas.
Surpreendentes nessa pesquisa são as descobertas de que os cães nativos
americanos parecem não existir mais no nosso continente. Atualmente, cães
descendentes diretamente das linhagens dos nativos americanos não são
encontrados. Um cenário possível seria a chegada de humanos europeus com seus
cães, que seriam portadores de doenças infecciosas às quais os cães nativos
americanos seriam suscetíveis. Ainda há muito o que estudar, e os próprios
autores afirmam que ainda há grandes incertezas quanto ao surgimento e o
estabelecimento desses animais ao redor do globo. Esse novo artigo traz dados
muito importantes, que revelam uma nova faceta da evolução dos cães domésticos.
No entanto, esses resultados abrem as portas para muitas novas perguntas e
iluminam o caminho para novas pesquisas: ainda estamos longe de saber tudo
sobre nossos melhores amigos!”,
Natalia de Souza Albuquerque, bióloga, pesquisadora da
Universidade de São Paulo e coautora do livro Cognição e comportamento de cães
— a ciência do nosso melhor amigo
Três perguntas para Liane
Dahás, pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP), mestre e doutora em comportamento e cognição canina pela Universidade
Federal do Pará
Estudos genéticos que façam uma retrospectiva da evolução
dos cães ajudam as pesquisas sobre a cognição desses animais?
Sem sombra de dúvida. A partir desses estudos, a gente consegue
compreender o histórico de repertório comportamental da espécie, já que é a
partir das pressões filogenéticas que os comportamentos passam a ter alguma
função na vida dos indivíduos. Por exemplo, os cães são mais dóceis que os
lobos, brincam mesmo durante a vida adulta, olham nos olhos dos humanos
procurando por dicas ambientais... Essas características só são possíveis em
função do seu histórico de domesticação. Sabemos que cães têm habilidades
cognitivas que só são compartilhadas com outro mamífero: o ser humano. Isso só
se explica pela coevolução de um com o outro. Há quem diga que a domesticação
dos cães foi tão importante para a nossa civilização quanto a habilidade de
fazer fogo. A evolução dos cães tem também muito a dizer sobre o próprio ser humano:
a compreensão da evolução canina pode lançar luz sobre a própria migração
humana ou até mesmo sobre antigas rotas de comércio.
A pesquisa mostra que os cães ancestrais das Américas
desapareceram com a colonização europeia. Pelas raças que temos hoje no
continente, já se desconfiava de que não existe um cão propriamente americano?
As raças conseguem ser artificialmente selecionadas em um
tempo relativamente curto, em comparação com a seleção natural. Portanto, as
suas especificidades se relacionam mais com o gosto do criador do que por
qualquer outra variável. Assim, sem as testagens genéticas cada vez mais
avançadas, a descoberta apresentada no artigo não seria possível.
O que se sabe sobre a ancestralidade e a evolução dos cães
no território brasileiro?
Até pouco tempo, acreditava-se que o cão havia sido trazido
pelos portugueses, pois não havia registro dessa espécie no território
brasileiro antes disso. O interessante é que muitos historiadores apontam o
quanto os índios passaram a utilizar os cães na rotina das aldeias, inclusive
para caçar, o que só teria se dado com a chegada dos europeus. No entanto, em
2016, foram encontrados vestígios de um cão no sul do país que foi datado em
cerca de mil anos antes da chegada dos portugueses. De acordo com os estudos
realizados, acredita-se que a espécie se alimentava de animais marinhos. Por
ser o único exemplar encontrado, a presença de cães domésticos no sul da
América do Sul antes do século 16 ainda é uma hipótese a ser comprovada. //
TOMADO DE CORREIO BRAZILIENSE
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