Agrotóxicos atingem, diretamente, a saúde de próstata, pênis
e testículos
Segundo a OMS, a exposição a pesticidas pode aumentar risco
endocrinológico, especialmente no
que diz respeito ao sistema reprodutivo
masculino
PO Paloma Oliveto
(foto: Ana Rayssa/Esp.
CB/D.A Press)
Em 1962, a ecóloga norte-americana Rachel Carson
escreveu, na icônica obra Primavera silenciosa, que seria apontada como a
fundadora do movimento ambientalista: “Se vamos viver tão intimamente com esses
químicos — comendo-os e bebendo-os, levando-os para a medula de nossos ossos —,
temos de entender algo sobre sua natureza e seu poder”. Ela se referia aos
pesticidas que, à época, não levantavam suspeita entre a população e apenas
começavam a atrair a desconfiança da comunidade científica.
As denúncias feitas por Carson receberam uma enxurrada de
críticas da agroindústria, mas, na mesma proporção, atraíram a confiança dos
leitores, que começaram a exigir mais clareza sobre os efeitos desses produtos
na saúde humana. Um ano depois do lançamento do livro, um relatório do Comitê
Científico da Presidência, ocupada por John F. Kennedy, apoiou o conteúdo da
obra, uma tendência acompanhada por todo o mundo ocidental.
Passado mais de meio século, o Brasil é acusado por médicos
e cientistas de retroceder, indo na direção contrária ao esclarecimento
público, com a Câmara dos Deputados dando aval a uma proposta que, entre outras
coisas, trocará o nome de agrotóxico por “defensivo fitonassanitário” e
excluirá o Ministério da Saúde e o Ministério do Meio Ambiente do processo de
registro desses produtos. No fim de junho, a Comissão Especial da Câmara dos
Deputados aprovou o projeto de lei 6299/2002, de autoria do ministro da
agricultura, Blairo Maggi, que altera as regras de registro, fiscalização e
controle dos agrotóxicos. O texto, sujeito à votação no Plenário da Casa, já
foi apelidado de PL do veneno.
Entre as sociedades médicas que manifestam preocupação com o
teor da proposta, está a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia
(Sbem). Na semana passada, Fábio Trujilho, presidente da Sbem, e Elaine Frade,
presidente da Comissão de Desreguladores Endócrinos da instituição, divulgaram
nota sobre o projeto, tachado de “grande irresponsabilidade e descompromisso
com a saúde da população”. Segundo a Sbem, cerca de 600 estudos científicos
demonstraram o potencial dos agrotóxicos de interferir no sistema endócrino,
principalmente no desenvolvimento do sistema reprodutivo, na fase intrauterina.
Antes da votação, a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC) e o Instituto Nacional de Câncer José Alencar (Inca) já haviam
se posicionado: “Alertamos a sociedade brasileira para os efeitos
potencialmente catastróficos da aprovação deste PL para a saúde pública”,
afirmou a SPBC. “Tal modificação colocará em risco as populações — sejam elas
de trabalhadores da agricultura, residentes em áreas rurais ou consumidores de
água ou alimentos contaminados —, pois acarretará na possível liberação de
agrotóxicos responsáveis por causar doenças crônicas extremamente graves e que
revelem características mutagênicas e carcinogênicas”, advertiu o Inca.
Desreguladores
De forma geral, as pesquisas associam a toxicidade dos
pesticidas a mutações que podem levar ao desenvolvimento de câncer, doenças
degenerativas e distúrbios do neurodesenvolvimento. Na endocrinologia,
especificamente, a preocupação é com uma função que muitos desses produtos têm:
a de desreguladores endócrinos. Trata-se de um conceito recente, cunhado na
década de 1990, quando a farmacêutica norte-americana Theo Colborn apresentou
um estudo mostrando que certas substâncias químicas às quais as pessoas são
expostas ao longo da vida agem no organismo enganando o sistema endócrino.
Essas toxinas mimetizam ou anulam a função de importantes hormônios, ligando-se
aos receptores responsáveis por detectá-los e reagir à presença deles.
Plástico com BPA, alguns medicamentos, cosméticos e artigos
de higiene pessoal, revestimentos de latas, determinados tipos de papéis e
retardadores de chama são alguns dos produtos que levam substâncias com essa
função em sua composição. Ao menos nove classes de químicos usados no controle
de pestes agrícolas são comprovadamente desreguladoras endócrinas (veja arte).
Fetos, crianças e adolescentes são os mais vulneráveis aos efeitos adversos.
“Nesses casos, o raciocínio da toxicidade não tem aplicação.
Doses mínimas dos desreguladores têm efeito máximo nos sistemas endócrinos”,
observa Elaine Frade, presidente da Comissão de Desreguladores Endócrinos da
Sbem. Ou seja, ainda que a quantidade do ativo seja tachada de “segura”, o
organismo não interpretará da mesma forma, e as mais baixas concentrações de
agrotóxicos com essa função têm potencial de mimetizar a ação dos hormônios.
Como seres humanos estão expostos a uma variedade muito grande
de substâncias no meio em que vive, é difícil realizar estudos controlados para
detectar a influência direta de um único composto na saúde. Contudo, pesquisas
com animais criados em laboratório fazem essa associação. “Eles mostram conexão
dos desreguladores com câncer, obesidade, doenças de tireoide e alterações no
sistema reprodutivo, entre outros”, diz a médica.
“Medida tendenciosa”
Caso o PL 6299/2002 seja aprovado no Congresso e sancionado
pela Presidência, o termo agrotóxico vai sumir dos rótulos, e será substituído
por “produto fitossanitário de controle ambiental”. Trata-se de “clara intenção
de passar a ideia de uma falsa inocuidade desses produtos para a população”,
segundo posicionamento da Sbem. Além disso, não haverá mais a lista de produtos
não agrícolas que contêm ingredientes ativos de agrotóxicos, como os
inseticidas. O texto também tira da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) a atribuição de analisar e deliberar sobre o registro de
agrotóxicos, passando a responsabilidade ao Ministério da Agricultura. Os
produtos classificados como “risco aceitável” passam a ser permitidos e apenas
os considerados de “risco inaceitável” ficarão permitidos. “Essa medida é
absurda e tendenciosa”, afirma a Sbem.
No Brasil, há
múltiplas vias de exposição (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Pós-doutor em ecotoxicologia, Cesar Koppe Grisolia publicou,
em 2005, uma obra na qual discute a influência dos agrotóxicos em mutações
genéticas que levam ao desenvolvimento do câncer. Passada mais uma década, o
livro está mais atual do que nunca. De lá para cá, mais pesquisas confirmaram
essa associação. Enquanto isso, na contramão da maioria dos países, o Brasil
ainda permite a comercialização de alguns dos pesticidas apontados pela ciência
como potencialmente cancerígenos, como os organoclorados. Em entrevista ao
Correio, Koppe demonstra preocupação com a fiscalização falha da lei dos
agrotóxicos e critica a aprovação recente do PL 6.299/2002. “Esse novo projeto
de lei facilita a ação de lobistas e as pressões da indústria”, diz.
O senhor
publicou o livro Agrotóxicos: mutações, câncer & reprodução em 2005. Desde
então, se consolidou ainda mais a evidência sobre os impactos negativos desses
produtos nos genes?
Sim, a cada ano, aumenta na literatura científica o
número de publicações mostrando os efeitos nocivos dos agrotóxicos sobre o
material genético de diferentes espécies, inclusive o homem. Além dos efeitos
cancerígenos e causadores de malformações congênitas. Há estudos
epidemiológicos mostrando a correlação entre exposição aos agrotóxicos e o
aumento de mutações no DNA que levam ao câncer. Esses dados estão mais
detalhados no nosso livro.
Além dos
trabalhadores que aplicam os agrotóxicos no campo, as mutações cancerígenas e o
risco de infertilidade podem ocorrer em consumidores desses produtos?
Sim, porque hoje no Brasil o cenário é de múltiplas
vias de exposição, como os níveis excessivos de resíduos nos alimentos, as
contaminações das águas que bebemos, e do ar que respiramos. Assim, mesmo que
em concentrações baixas, somando-se as diversas vias de exposição, o resultado
final representa níveis significativos de exposição na população em geral. Os
riscos a saúde são diretamente proporcionais à intensidade de exposição e, no
Brasil, o grande aumento no uso desses venenos elevaram os riscos de causar
mutações no DNA, de câncer e de infertilidade.
Dos pesticidas
existentes no mercado brasileiro, quais têm maiores potenciais de impactar
negativamente a saúde?
São muitos os agrotóxicos com risco de câncer
registrados no Brasil. Ainda permitimos o registro e comércio de agrotóxicos
organoclorados. Apesar de proibirmos os mais famosos, como o DDT e o BHC,
somente depois de banidos no mundo todo, ainda pulverizamos organoclorados como
endosulfan, que causa efeitos nocivos sobre a reprodução das espécies. O
herbicida clorado 2,4-Diclorofenoxiacético causa linfomas, foi usado como um
dos componentes do Agente Laranja na Guerra do Vietnã. Os soldados americanos
que lutaram no Vietnã foram expostos e desenvolveram linfomas. A população
vietnamita desenvolveu câncer e diferentes malformações, pois os resíduos desse
herbicida no ambiente são muito persistentes.
No Brasil, a fiscalização
é rigorosa o suficiente para garantir que os alimentos contenham apenas as
quantidades de agrotóxicos estabelecidas como seguras?
A lei dos agrotóxicos (7.802) ainda é bastante atual e
semelhante às legislações de países de primeiro mundo. O nosso problema não
está na lei, mas, sim, na fiscalização. As pulverizações aéreas irregulares,
desvios de uso de indicação de cultura, descartes irregulares de embalagens
contaminadas no campo, contrabando de agrotóxicos proibidos e aplicações acima
das doses recomendadas são exemplos da gravidade do problema. A grande extensão
territorial e o contraste entre as regiões dificultam uma fiscalização mais
eficiente. Além disso, a estrutura de fiscalização e de recursos humanos está
muito aquém da nossa realidade de extensão territorial.
O senhor acredita que
a aprovação do projeto de Lei 6.299/2002 pode ter impacto direto sobre a saúde
do consumidor e do trabalhador rural?
Com certeza esse novo projeto de lei vai trazer muito
mais prejuízos à sociedade. Devido à complexidade do registro de agrotóxicos,
não pode ficar centralizado em um único órgão. A avaliação dos perigos dos
agrotóxicos sobre a saúde humana é dever legal do Ministério da Saúde, por meio
da Anvisa. Assim como os riscos ao ambiente, que é de competência do Ministério
do Meio Ambiente, por meio do Ibama. O mercado de agrotóxicos no Brasil
movimenta bilhões de dólares por ano, e é público e notório que o Estado
Brasileiro é corrupto. Esse novo projeto de lei facilita a ação de lobistas e
as pressões da indústria, além de flexibilizar o uso de agrotóxicos, que na lei
atual deveriam ser restringidos ou mesmo proibidos. TOMADO DE CORREIO
BRAZILIENSE
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