GELO ANTÁRTICO DE
PESQUISA É ARMAZENADO EM FRIGORÍFICO AO LADO DE CAIXAS DE PIZZA E FRANGO
Por não dispor de estrutura para abrigar amostras na UFRGS,
pesquisadores precisaram alugar espaço em câmara fria de empresa
Por: Rodrigo Lopes
A 10 metros de altura, dividindo espaço com carne bovina,
frango, caixas de pizza e pão de queijo, encontra-se parte fundamental da
pesquisa brasileira na Antártica: peças de gelo de 300 anos retiradas do
interior do continente gelado que ajudam os cientistas a entender as mudanças
do clima.
Por não dispor de local adequado para acondicionar as
amostras, o Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) foi obrigado a contratar um frigorífico comum, em Nova Santa Rita.
Os pedaços, conhecidos como "testemunhos do gelo", são fruto do
trabalho minucioso de extração feito por pesquisadores gaúchos nos últimos 13
anos.
Apesar de ser pioneiro no país e referência mundial em
pesquisas sobre a Antártica, o centro da UFRGS não tem uma câmara fria, que
evitaria o derretimento das amostras. Por isso, há quatro anos, os registros
ocupam as posições 180 e 183 de uma unidade de 8 mil metros quadrados na
empresa Reiter Log. No complexo logístico, companhias como BRF (Sadia e
Perdigão) e redes de supermercado mantêm seus produtos resfriados ou
congelados, antes de serem transportados até pontos de venda. O gelo antártico
está depositado na mesma câmara fria utilizada pela Walmart. No local, a
temperatura é de -25°C, semelhante à registrada no interior do continente em
dias sem vento.
O centro polar da UFRGS paga cerca de R$ 500 pelo aluguel
mensal do espaço no Reiter Log. Lá, há dois tipos de amostras: gelo extraído na
expedição de dezembro de 2008 e de janeiro de 2009 já processado em laboratórios
da Universidade do Maine, nos Estados Unidos, e dividido em cerca de 5 mil
frascos; e cilindros de 40 metros de "firn" (estágio intermediário
entre neve e gelo), partidos em segmentos de um metro cada, remanescentes da
primeira expedição de um pesquisador brasileiro ao Polo Sul Geográfico, em
2004. Essas peças que não estão em frascos são protegidas por sacos plásticos.
Todo o material está acomodado em caixas de isopor. Segundo o químico Ronaldo
Bernardo, responsável pela análise na UFRGS, apesar do local improvável para
armazenar amostras científicas, não há risco de contaminação.
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A decisão de alugar o espaço foi tomada devido ao temor de
que um blecaute destrua as amostras. No ano passado, o centro polar, localizado
no prédio do Instituto de Geociências, no campus do Vale, na Capital, ficou sem
luz por 36 horas.
— Mais quatro horas e teria comprometido testemunhos da
expedição de 2008 — diz Bernardo.
Cada viagem desse tipo à Antártica custa em média US$ 400
mil, investimento que seria, em parte, perdido. Na câmara fria da Reiter Log,
há planos de contingência. Sete geradores garantem o abastecimento se faltar
energia. Mesmo com pane desses aparelhos, o local poderia manter-se gelado por
dias, conforme Misael Guttman, coordenador de manutenção da empresa. Em 2013,
quando pesquisadores procuraram o frigorífico, a ideia era tão estranha que os
locadores tinham dificuldade para estabelecer valor para o seguro. Embora
importantes para a ciência, as peças não têm valor comercial.
— Fico mais seguro porque eles não vão perder todos os produtos
que estão lá — avalia o professor Jefferson Cardia Simões, um dos maiores
especialistas brasileiros em estudos na Antártica.
Os testemunhos são retirados dos mantos formados pela neve
que se acumula em camadas na Antártica. Ao cair, carregam consigo impurezas da
atmosfera. Devido à pressão de camadas depositadas posteriormente, essa neve se
transforma em gelo. Assim, a composição química da atmosfera daquele período
fica preservada. Ao se perfurar os poços, é possível analisar as impurezas e os
gases e obter relatos ambientais de séculos atrás. Foi a partir desses
testemunhos do gelo que cientistas determinaram, desde o início da revolução
industrial, o aumento de 36% na concentração de dióxido de carbono (CO2), um
dos gases responsáveis pelo aquecimento global. Com o gelo armazenado no
frigorífico, pesquisadores querem saber como a Antártica influencia o clima no
sul do Brasil.
Além da falta de local adequado para guardar as amostras, os
cientistas esbarram na burocracia para trazê-las da Antártica. Por isso, em
muitas expedições, as peças de gelo são enviadas diretamente de Punta Arenas,
no Chile, para o Maine, onde são preparadas para análise.
— No Maine, gastamos US$ 30 mil por ano — compara Simões.
Esse trabalho poderia ser feito na UFRGS, mas, sem o prédio,
cientistas não têm espaço nem para guardar as amostras nem para abrigar
equipamentos de processamento do gelo.
Estação corre risco de não ter cientista
Enquanto o Brasil constrói uma moderna estação de US$ 99,6 milhões,
que substituirá a antiga Comandante Ferraz – consumida por um incêndio em 2012 – o Programa
Antártico Brasileiro, com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da
Criosfera e 17 projetos de pesquisas de 10 universidades, corre o risco de não
ter dinheiro para enviar um cientista sequer para a Antártica neste ano.
— Não adianta gastar aquela fortuna. Corremos o risco de ter
uma estação sem cientista. Casa sem pesquisador não produz ciência — avalia o
professor Jefferson Simões, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia da Criosfera/UFRGS.
Em 2007, a UFRGS estava perto de construir um prédio próprio
para abrigar o Centro Polar e Climático, sede do Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia da Criosfera. Avaliada hoje em R$ 8 milhões, a edificação de
quatro andares e 3,1 mil metros quadrados seria construída no principal acesso
do campus do Vale, no bairro Agronomia. A UFRGS solicitou verba ao governo
federal. Conseguiu R$ 1,05 milhão. Mas a obra esbarrou em aspectos
burocráticos, como licença ambiental. Segundo Simões, à época, seria possível
construir pelo menos o primeiro andar do edifício — o mais importante, pois ali
estariam os laboratórios de testemunhos de gelo, que hoje estão no frigorífico
comercial.
Passados 13 anos, o único sinal do que seria um centro
adequado ao alto padrão da pesquisa gaúcha na Antártica é uma placa com a
inscrição "Polar", próximo a uma parada de ônibus. O resto é mato. O
projeto da edificação teria câmara fria, museu, salas de aula para estudantes e
formação de professores, além de laboratórios. Para não perder a verba, Simões
decidiu comprar equipamentos, entre eles um avaliado em US$ 400 mil, capaz de
analisar isótopos, abrigado atualmente em um banheiro adaptado como laboratório
no prédio do anexo do Instituto de Geociências. Com aparelhos como esse,
cientistas reconstruíram a história do clima dos últimos 800 mil anos.
Sem o prédio, o material utilizado em expedições à Antártica
está guardado em quatro contêineres, dois deles sem energia elétrica. Naqueles
onde há luz e ar-condicionado, são armazenadas roupas polares. No dia em que ZH
visitou o local, casacos especiais, capazes de manter o corpo aquecido a uma
temperatura de 60°C negativos, estavam em varal improvisado entre dois prédios.
— Esse material teria de ser mantido em sala com dessecagem.
No contêiner, tomamos cuidado para que não crie mofo. Imagina se algum
cientista pega uma infecção na Antártica — preocupa-se o pesquisador.
Duas motos para deslocamento na neve, pás e perfuratrizes
também estão nos contêineres, situação bem diferente se comparada a centros de
excelência, como os laboratórios da Universidade de Grenoble, na França, e do
Serviço Antártico Britânico, em Cambridge, na Inglaterra, cujas pesquisas os
cientistas da UFRGS são parceiros nos trabalhos de campo.
— Quando conto que fazemos pesquisa com essa estrutura, não
acreditam — diz Simões.
A UFRGS foi procurada na quarta-feira e, até sexta, não
tinha um posicionamento sobre o assunto. TOMADO DE ZERO HORA DE RGS BR
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