Genes herdados de
neandertais ajudam a nos proteger de vírus, mostra estudo
Cientistas americanos identificam 152 porções de DNA
herdadas da espécie extinta e que, hoje, atuam na defesa contra organismos que
causam doenças como a Aids e a hepatite C
VS Vilhena Soares (foto: Valdo Virgo/CB/D.A Press)
Cerca de 40 mil anos
atrás, os neandertais desapareceram do planeta. Não por completo. Como eles se
relacionaram com outra espécie humana, o Homo sapiens, hoje, nós, modernos,
carregamos cerca de 2% do DNA desse antepassado. Ao investigar esses genes
herdados, pesquisadores dos Estados Unidos descobriram que eles estão
relacionados à defesa do corpo contra doenças causadas por vírus que têm o RNA
como material genético, como o da hepatite C e o HIV. As descobertas foram
publicadas na última edição da revista americana Cell.
Os cientistas analisaram um compilado de mais de 4.500 genes
de humanos modernos — essas porções de DNA são conhecidas por interagir com
micro-organismos que invadem o corpo humano — e compararam essas informações
genéticas com as de um banco de dados de DNA de neandertais. Foram
identificados 152 fragmentos de genes de humanos que também estiverem presentes
nos ancestrais.
Análises mostraram também que, no homem de hoje, os 152
genes herdados interagem com o HIV, o vírus da influenza A e o da hepatite C —
todas enfermidades de vírus de RNA. “Os genes neandertais provavelmente nos
deram alguma proteção contra vírus com que eles tiveram contato quando deixaram
a África”, explica, em comunicado, Dmitri Petrov, biólogo evolucionário da
Faculdade de Ciências Humanas e Ciências de Stanford, nos Estados Unidos, e um
dos autores do estudo.
Os investigadores explicam que, antes do primeiro contato
entre as duas espécies, os neandertais viveram fora da África por centenas de
milhares de anos, tempo suficiente para que seu sistema imunológico
desenvolvesse defesas contra vírus infecciosos ao chegar na Europa e na Ásia.
“Faz muito sentido para os seres humanos modernos apenas ‘pegar emprestado’ as
defesas genéticas já adaptadas de neandertais em vez de esperar pelas próprias
mutações adaptativas e desenvolvê-las, o
que teria levado muito mais tempo”, destaca David Enard, também autor do estudo
e professor da Universidade do Arizona. “Sabemos que herdamos doenças dos
nossos antepassados, isso podemos dizer com respaldo. Agora, vemos que também
recebemos defesas.”
Para Fabrício Rodrigues dos Santos, professor de genética e
evolução da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a pesquisa mostra um
fenômeno comum na história evolutiva, quando genes de uma espécie são passados
para outra. “Temos o caso do cavalo também, que tem genes que podem ter vindo
do asno”, exemplifica. O especialista chama atenção para o fato de que a defesa
tratada na pesquisa não deve ser confundida com o sistema imune. “Nesse caso,
são proteínas que interagem menos com esses vírus, o que também é uma forma de
defesa, mas distinta”, diferencia.
Um dos pontos que mais chamaram a atenção do professor da
UFMG é a oferta de informações relacionadas a um fenômeno bastante conhecido na
área científica, a “corrida armamentista”. “Esses dados reforçam o que se
mantém até hoje: as mudanças na relação entre o hospedeiro e o parasita. Ambos
vão criando defesas ao longo do tempo para se proteger. Quando a gripe
espanhola surgiu, por exemplo, causou muitas mortes. Quem sobreviveu, porém,
gerou defesas. É algo que vimos agora no Nobel de Química, os ganhadores usaram
a evolução para otimizar moléculas”, ressaltou.
Males do pasado Além
de oferecer uma nova perspectiva sobre a relação entre os neandertais e os
seres humanos modernos, o trabalho americano demonstra que é possível analisar
o genoma de espécies e encontrar evidências de doenças antigas. “É semelhante à
paleontologia. Você pode encontrar indícios de dinossauros de maneiras
diferentes. Às vezes, descobrirá ossos reais. Às vezes, apenas pegadas na lama
fossilizada. Nosso método é indiretamente semelhante. Como sabemos quais genes
interagem com quais vírus, podemos inferir os tipos de vírus responsáveis por
surtos de doenças antigas”, explica David Enard.
O professor da UFMG acredita que a pesquisa americana pode
ser utilizar para a análise de outra espécie. “Temos os denisovanos, que
viveram na Rússia e também podem ter carregado genes semelhantes”, diz Fabrício
Rodrigues dos Santos. Os cientistas acreditam que os denisovanos habitaram a
região da Eurásia com os neandertais e que houve cruzamento entre esses
hominídeos durante gerações seguidas.
Palavra de
especialista
Novos estudos para prevenção
“Nós sabemos que bactérias de diferentes colônias podem
trocar informação sobre a defesa contra vírus bacteriófagos ou sobre resistência a antibióticos. O que esse
grupo de pesquisadores mostrou é que, até hoje, no nosso DNA, existem provas de
que nossa espécie e os neandertais também fizeram essa troca. Claro, diferente
do modo que as bactérias fazem, mas eficiente para nossas espécies. Não
esperamos que nenhuma descoberta nesse momento se traduza em um tratamento, mas
eles podem indicar caminhos valiosos para pesquisa. O artigo já aponta a
possibilidade de estudar epidemias do passado, para as quais não temos mais
amostras virais. Uma vantagem seria prever possíveis patógenos para os quais
passamos muito tempo sem contato. Outro ponto interessante é entender até que
ponto doenças atuais podem ter raízes nessas sequências de DNA de outras
espécies. É tentador pensar que parte das doenças autoimunes pode representar
nada mais do que uma reação ao encontro entre duas espécies tão distintas”
Gustavo Guida, geneticista do Laboratório Exame, em Brasília
Evolução dirigida Na
última quarta-feira, os cientistas americanos Frances H. Arnold e George P.
Smith e o britânico Sir Gregory P. Winter receberam o Nobel de Química devido a
pesquisas baseadas em princípios da evolução para o desenvolvimento de
proteínas. Essas moléculas podem ser usadas em áreas distintas, da produção de
biocombustíveis a medicamentos. Segundo a Real Academia de Ciências da Suécia,
o trio “aplicou os princípios de Darwin em tubos de ensaio”. // TOMADO DE
CORREIO BRAZILIENSE
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